quarta-feira, 1 de abril de 2015

As metáforas do cotidiano que "escondem" o preconceito


Quem nunca ouviu o termo "negro com alma branca"?
Em entrevista a um telejornal, uma profissional da área da saúde, ao se referir ao comércio ilegal de medicamentos, citou o hábito de alguns brasileiros em adquirir remédios no mercado negro. Parecendo desconcertada com o termo, emendou a este, a expressão mercado paralelo.

O nome do programa e da entrevistada não importam. A questão é que a profissional foi mais uma a repetir um termo tão usual quanto comum. Algumas expressões estão e são presentes em nosso cotidiano, que muitos que as repetem nem se dão conta de repetirem expressões que reproduzem a ideia da pretensa inferioridade da raça negra.

Em sua dissertação Reflexos Negros - A Imagem Social do Negro Através das Metáforas, a pesquisadora Maria Edna Menezes observa que muitas expressões relativas ao negro usadas na linguagem cotidiana são pejorativas, como provérbios, poemas, músicas e narrativas folclóricas. "O preto é conceituado como contra-cor do branco e, por representar a oposição a todas as cores, sempre foi associado às trevas primordiais". 

Como exemplo, sabemos que muitos centros espíritas se classificam praticantes da mesa branca, provavelmente como tentativa de não serem comparados com os que são sub-julgados praticantes da magia negra, ou bruxaria, ligando-os com a prática do mal.

A obra reúne doze artigos sobre metáfora
No livro Metáforas do Cotidiano, organizado por Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva, publicação do Programa em Estudos Linguísticos da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, que reúne doze artigos sobre metáforas, escritos por professores e pós-graduandos da UFMG, além de autoras da Universidade Federal de Goiás e Mara Zanotto, da Universidade de São Paulo, a USP, a organizadora  da obra explica que a interpretação da metáfora está ligada às idéias de denotação e conotação, ou seja, à significação com valor REFERENCIAL e à significação associada a valor EMOCIONAL. Através do livro, Vera Lúcia pretendeu demonstrar como as metáforas, denominada por ela de Metáforas Negras, especificamente, introjetam no falante o preconceito racial/social. Essas metáforas fazem parte de nosso sistema conceptual e seu uso intenso faz com que o falante incorpore, e passe a considerar como seus, valores preconceituosos que permeiam a linguagem. Assim, ao dizer "O dia hoje está negro" o sentido denotativo seria "um dia sem sol, com nuvens escuras" e o sentido conotativo ou metafórico "um dia cheio de problemas, aborrecimentos ou tensões".

Segundo Vera, quando alguém diz "Ele é um negro de alma branca", este falante está produzindo um enunciado falso, pois não se atribui cor à alma. No entanto, ao fazer uma afirmação falsa, o falante tem a intenção de dizer outra coisa, como, por exemplo, "ele é um negro que possui qualidades próprias das pessoas brancas".

Ao longo do livro The Metaphors We Live By, Lakoff e Johnson explicam que a maioria das nossas metáforas evoluíram em nossa cultura através de um longo período, mas muitas nos foram impostas pelas pessoas do poder, como líderes políticos, religiosos, comerciantes, publicitários, etc., e pelos meios de comunicação em geral. 

Para Vera, numa sociedade preconceituosa, o negro é visto como ser inferior, primitivo, retardado, perverso, desonesto, tolo, possuidor de maus instintos, sujo, irresponsável, preguiçoso, incapaz, etc. Esses preconceitos tornam-se traços semânticos das palavras preto/negro que vão sendo reproduzidos nas inúmeras metáforas que utilizam essa cor. A autora argumenta ser irônico ver o próprio negro ou pessoas que se posicionam contra o racismo, agindo como veículos inconscientes de disseminação das Metáforas Negras e usando-as, muitas vezes, em contextos onde procuram defender a raça e sua cultura. Como quando Henry Correa de Araújo, em um poema em homenagem ao bispo Desmond Tutu, tropeça na Metáfora Negra.
Eu não barganharia o ouro da cidade do Cabo
de Pretória ou de Joanesburgo
para dele fazer a mais bela jóia
e dá-la de presente à mulher que amo.
Também não pisaria
a terra dos bantustans
o coração ensangüentado de Soweto
onde se tortura e mata
quem nasceu de um ventre negro
e cresceu com a pele escura.
Como é escura a vida
dos que tombam nas ruas da África do Sul
Como árvores abatidas pelos vendavais.

Fonte: www.veramenezes.com

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