terça-feira, 26 de março de 2024

Era uma vez uma redação

 

Prédio onde por anos foi a sede do
jornal O Diário de Mogi/ Foto:
Elisa Marina

A carcaça do que um dia fora um prédio dá de ombros para a engenharia e arquitetura nele investidas. A carcaça da redação de um jornal simboliza o que hoje é o jornalismo e a sua chegada na era da pós-verdade. 

No final dos anos de 1990, estagiei por pouco tempo na redação de O Diário de Mogi, ocasião em que conheci uma cidade que os meus quatro anos na Universidade de Mogi das Cruzes, a UMC, não me fizeram ver. Nosso olhar de estudantes de jornalismo nos fechava ao que acontecia apenas nas dependências do campus universitário. Não nos cabia escrever sobre o nosso entorno, mas ao que se passava dentro dos muros da faculdade. 

Por isso, entrar na redação de um jornal "de verdade" era sentir de perto a pulsação do jornalismo vivo, aquele que apura a informação e leva ao leitor a verdade dos fatos. De nada valia a nossa opinião, estávamos ali para fazer a ponte entre o furo de uma reportagem e o cidadão comum, a quem devemos informar.

Dar à imprensa a legítima alcunha de quarto poder (disputando lugar com os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário), dizia muito mais do direito a todos ao acesso à informação do que encher de vaidades seus profissionais. Quer mais perigo a um governo do que um povo abastecido de informação?

Hoje, o jornalismo resiste como pode, pois divide espaço com quem supõe que escrever qualquer bobagem alicerçada de achismos é o mesmo que noticiar um fato. Não, não é! Chegamos ao ponto de - nós, os jornalistas com registro e formação - disputar voz e vez com in (fluência) a (dores) digitais e midiáticos que como tais convencem seus milhões de seguidores com as suas pós-verdades. Idealizam. Supõem. Escrevem. E em hipótese alguma editam, que se fosse obedecer ao crivo de uma edição jornalística, do texto não se salvaria nem o título.

Quando assumiu a presidência, Jair Bolsonaro não poupou críticas à imprensa, o que perduraria por todo o seu mandato. E a razão por trás da tática era simples: jogar seus seguidores contra os jornalistas a quem ele dirigia seus impropérios, a saber, Rede Globo (emissora líder de audiência), e os principais jornais impressos, e assim sem dar a chance a seus eleitores que tirassem suas próprias conclusões dos fatos, pelo contrário, a intenção era que seus apoiadores sequer assistissem ou lessem o que era notícia nesses veículos, e mais, plantar a dúvida, desconfiar, para que a sua “verdade” fosse a única fonte de informação de seu cercadinho, por sinal, um local que os jornalistas abandonariam mais tarde devido aos sistemáticos ataques do próprio presidente.

O governo Lula, que hoje ocupa a presidência, é democrático, não desqualifica nem censura o trabalho da imprensa. Mas as estruturas do jornalismo foram abaladas, e o que entristece não é ver apenas um prédio em ruínas, afinal há também que se considerar que os tempos são outros, as mídias sociais fizeram diminuir consideravelmente o número de profissionais nas redações, e o trabalho remoto passou a ser o novo normal. Mas ver ruir a razão de ser do próprio jornalismo é entender que um país cada vez mais carente de uma educação de qualidade vai deixando seus cidadãos facilmente manipuláveis nas mãos daqueles que defendem apenas seus interesses, e assim direcionar como os fatos chegarão aos cidadãos. E se é que chegarão…

Por Elisa Marina 

quinta-feira, 21 de março de 2024

O voyeurismo das moscas

 

Mosca macho emite vibrações como 
forma de cortejar a fêmea
Ela voa, e seu bailado desenha no ar sinuosas curvas idiossincráticas. Ali, ela é apenas uma bailarina solitária e invasora sem importância nenhuma para os donos da casa, e muito menos para a aranha deitada em sua teia no canto do chão de madeira, que não faz ideia de que sua fome poderia ser saciada com o alimento que voa dois metros acima do seu cansaço. 

A mosca pousa onde seus instintos de inseto entendem ser seguro, a saber, o canto esquerdo do batente, cuja porta permanece aberta e muda, para alívio da mosca, que quer silêncio absoluto na casa que habita há meia-hora, apesar de ser uma mosca sem ter a posse de uma escritura da casa que ocupa.

Dali, ela os vê chegar, em passos lentos e corpos enroscados, o casal de humanos deixa-se cair na cama bagunçada, e por onde ela, a mosca, esteve minutos antes, impregnando nos lençóis de seda um odor fétido de restos da comida que apodreciam na lixeira da cozinha, cômodo este que ela conhecia melhor que os donos de fato e de direito do imóvel. 

Pelo canto dos olhos, ela vê o humano macho despir o humano fêmea em lentidão semelhante a seu voo. Ela então dá dois passinhos para a direita se posicionando num ângulo perfeito para apreciar o vai e vem daqueles corpos. Os humanos alternam suas posições na cama. 
Moscas acasalando encontradas em âmbar
de 41 milhões de anos. 
Imagem: Jeffrey Stilwell

Agora o 
ângulo desfavorece seu olhar de voyeur. É preciso um giro de cento e quarenta e cinco graus para enfim poder deliciar-se com a cena. Eles gritam e gemem, e os sons são captados por suas antenas e decodificados para a comunicação dos insetos, ela passa então a emitir vibrações, no instante que suas patas dianteiras se erguem para ao alto ela orar ao deus dos insetos que ele proteja o casal na cama, não quer que eles caiam, uma vez que o barulho dos corpos ao chão tomar-lhe-ia de susto e ela de certo voaria.
Presa à parede, ela vê os corpos grudados, enquanto os sinais que emite são captados pelo outro invasor, a mosca fêmea, que voou por todos os cômodos da casa até encontrar-se com seu par, tomada de instintos primitivos de fêmea, e logo pousa ao lado do seu macho, excitada também assisti ao coito alheio. 

A mosca dominante e o macho humano conduzem suas fêmeas para dentro de seus corpos, cada qual se satisfazendo à sua maneira.
No entanto, antes que ambos cheguem ao ápice do clímax, o humano abandona a sua fêmea e um cheiro forte nada excitante, porém sufocante invade o cômodo, e o suficiente para enrijecer seus corpos que paralisados caem ao chão num silêncio sepulcral. 

Assim sendo, e sem qualquer resquício de remorso, os humanos retomam o coito ora interrompido pelo acasalamento indefinido do casal de moscas que agora são apenas dois corpos mortos devorados pela aranha. 

Por Elisa Marina 

domingo, 14 de janeiro de 2024

“Eu te amo”, expressão nascida na modernidade e imortalizada no cinema

Julia Roberts e Woody Allen, em cena de
Todos Dizem Eu Te Amo/Reprodução

Todos dizem eu te amo (Everyone Says I Love You/1996). Título do longa de Woody Allen, o filme fala sobre o amor e suas pulsões. Um casal apaixonado tem o amor ameaçado quando a esposa é apresentada a um ex-detento. Completando a confusão, o pai dela viaja para Veneza e acha que conheceu a mulher de sua vida. 
Trazendo o título para os nossos dias, “eu te amo” é a expressão do amor em sua singularidade, dita e repetida inúmeras vezes  - afinal, todos dizem - a tal ponto que o seu sentido ipsis-litteris perde força quando sua banalização desloca do real posto aqui “inconscientemente” em segundo plano. 

No portal da Academia Brasileira de Letras, um artigo do escritor Geraldo Carneiro, publicado originalmente em 2017 no jornal O Globo, discorre sobre a origem do “eu te amo”, e que este blog publica na íntegra.

“Sempre me perguntei quando é que a expressão eu te amo começou a ser usada aqui no Brasil. Não me lembro de ter lido a frase nos clássicos portugueses, nem em Machado de Assis, nem nos modernistas paulistanos. Repeti a pergunta a minha querida Nélida Piñon, e ela, com sua autoridade literária, confirmou que o eu te amo é uma expressão recente entre nós.

Sem dúvida houve a influência do cinema americano. Noel Rosa já reclamava disso nos anos 30: “Amor lá no morro é amor pra chuchu/ A gíria do samba não tem I love you.”

Na minha infância, nos anos 50, nunca ouvi meu pai dizendo eu te amo à minha mãe, nem minha mãe dizendo eu te amo a meu pai, nem a nós, seus filhos. Talvez naquele tempo o amor fosse mais recatado. Embora grande, o amor era sagrado, secreto, subjacente, não precisava que a gente se declarasse o tempo todo.

Me lembro, por exemplo, da música A Noite do meu bem, de Dolores Duran. Eu ainda não sabia o que era o amor, mas essa canção me deixava comovido como o diabo, como dizia o Drummond. Aliás, “meu bem” rolava muito lá em casa.

O principal responsável pela introdução do eu te amo no Brasil talvez tenha sido o poeta Vinicius de Moraes. Ele escreveu o “Soneto do amor total”, que começa assim:

“Amo-te tanto, meu amor, não cante

O humano coração com mais verdade;

Amo-te como amigo e como amante,

Numa sempre diversa realidade. (...)”

Eu sei que “amo-te” não é igual a “eu te amo”. A maneira de falar, a sintaxe ainda é meio lusitana. Mas na canção “Por toda a minha vida”, com música de Tom Jobim, Vinicius escreveu: “Eu te amo e te proclamo/ o meu amor, o meu amor.”

Agora, para aclarar as minhas trevas, saiu pela Companhia das Letras uma coletânea de textos de Vinicius, “Todo amor”, organizada por Eucanaã Ferraz. Uma reunião de algumas das mais belas palavras de amor no Brasil do século XX. Porque foi Vinicius quem mais praticou e falou sobre a arte de amar por aqui.

Às folhas tantas deste livro me deparo com uma carta do poeta para Beatriz de Moraes, com quem ele havia acabado de se casar pelo correio, por procuração. A carta é de 1938, quando o poeta estava em Oxford, usufruindo de uma bolsa de estudos. E depois de declarar a sua amada que “tu és minha vida, meu tudo (...) Eu sou teu escravo, teu criado, tua cria e tu és a minha namorada ilícita e esposa amantíssima (...)”, Vinicius arremata: “E te amo tanto que às vezes fico com vontade de dar urros de amor.”

É o primeiro te amo por escrito que eu conheço.

Dirá você que, no século XXI, as palavras de amor perderam muito prestígio. Serei forçado a concordar. Hoje todo o mundo diz que ama todo o mundo. Mas as pessoas, felizmente, continuam se amando. E basta que se leia a poesia de Vinicius para que as palavras ganhem de novo seu frescor original. A poesia sempre renasce. Haverá sempre um novo Romeu da Ilha do Governador que dirá, como se fosse a primeira vez, ao pé da janela de sua Julieta pós-moderna: eu te amo.”

Portanto, “eu te amo” revela mais um desejo de dizer do que de ouvir? Diria que é uma via de mão dupla sedimentada até que rompam-se os laços, e o tal amor antes dito é silenciado; mais tarde, aquele “eu” de outrora dirá o seu amor a outro ouvinte. 

Por Elisa Marina 

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

As crianças nos carros à frente não nos acenam

 

Legislação determina cadeirinhas e assentos
específicos de acordo com o tamanho e idade
da criança/ Imagem: Doutor Multas

Eram os anos de 1980. Época em que os adultos fumavam na nossa frente, nas nossas costas e nos cômodos fechados onde brincávamos. Podia ser no playground coberto de um restaurante, no salão de festas do aniversário do coleguinha, e todo e qualquer lugar em que estivessem. E sem querer, nós éramos mirins fumantes passivos que até podíamos comprar um maço de cigarros no bar da esquina mas nunca tragar uma bituca. Aos 95 anos de idade, ela continua a afirmar que começara a fumar ainda criança, e pelas mãos do avô. E o pai do Luiz Felipe que achou graça quando o flagrou com um cigarro na mão? Até hoje, com seus 52 anos, ele jura de pé junto jamais ter colocado aquele cigarro na boca.


Em sua maioria, os adultos nos protegiam, enquanto que  os homens da lei pareciam pouco se importar conosco. Nas bancas de jornal, havia capas de revistas com mulheres (e nenhuma com homens) em posições que as faziam expor tudo o que os nossos pais nos proibiam ver. A famosa rainha sem coroa, com seus colantes cavados, divertia a criançada pela manhã e no filme proibido alegrava marmanjos e baixinhos com mais de dezoito anos de idade, pelo menos é o que achávamos, até vir à tona a tal cena erótica envolvendo um menino menor de idade. Abafemos o caso.

Acho que os adultos nos protegiam, já os homens da lei nem se importavam com a nossa segurança nos bancos dos automóveis. Espremidos, viajávamos por horas junto ao frango assado na forma socada no bagageiro. Quando não estávamos em pé no banco - aos que o tamanho lhes permitia - a diversão era ajoelhar-se para, de costas para o motorista, acenávamos para os motoristas que nos seguiam. Valia acenar como também mostrar a língua. E que pai, mãe, ou seja lá o condutor, que vigiava o comportamento dos pirralhos se a obrigação deles era manter o foco na direção do veículo? Cabe destacar que a maior parte dos motoristas era bem gentil e igualmente acenava com sorrisos e risadas.
 
Então eu cresci e me habilitei, e meio que ao acaso me dei conta de que não há mais crianças expostas nos vidros traseiros dos veículos. Onde elas estão? Pausa. Claro, elas estão sentadas nos bancos, em cadeirinhas, assentos específicos, presas a cintos de segurança, em conformidade com o que determina as leis vigentes.

Em acordo com o Código de Trânsito, os chamados Sistemas de Redenção Infantil - SRI são fundamentais para proteger os pequenos em situações como freadas bruscas e acidentes de trânsito, um avanço inquestionável, no entanto, um saudosismo me atravessa quando sei que dificilmente uma criança irá acenar para mim e eu acenar de volta com sorrisos e gargalhadas. Aliás, os vidros agora escurecidos, os  encostos altos não nos permitem sequer enxergar se há alguma criança no carro da frente, sequer acenar. 

Evidentemente que não que se retroceder, mas a interação com o outro estranho a mim era um comportamento que muito revela em comparação com as crianças de hoje, uma geração impactada pela perda das interações sociais. E o horizonte que se avista é um cenário com muitos mundos, porém isolados entre si.

Por Elisa Marina