quinta-feira, 23 de junho de 2016

QUINTA FEMININA: Saartjie Baartman, um símbolo da exploração ocidental

Georges Cuvier a descreveu como uma
mulher inteligente e de personalidade
alegre
         O dia em que ela nasceu pouco se sabe, mas foi no ano de 1789. Mas o que tornou Saartjie Baartman famosa não foi um dom artístico, nem um trabalho de destaque. Considerada como uma aberração, foi o seu biotipo que a transformou em atração na Europa do século 19, sob o nome de "Vênus Hotentote". Hotentote era o nome para o povo khoi, mas que hoje é considerado um termo ofensivo, enquanto que Vênus é referência à deusa romana do amor. Saartjie pertencia a uma família khoisan, que vivia numa região onde hoje está localizada a província do Cabo Oriental, na África do Sul. Khoisan é a designação unificadora de dois grupos étnicos do sudoeste da África.

         Saartjie era criada de servir numa fazenda de holandeses perto da Cidade do Cabo. O irmão de seu patrão, Hendrick Cezar, sugeriu que ela se exibisse no Reino Unido, prometendo que isso a tornaria rica. Inocente, ela aceitou a proposta e viajou para Londres em 1810. Por todo o Reino Unido exibiu as suas dimensões corporais inusitadas, segunda a perspectiva europeia. Mediante um pagamento extra, os seus exibidores permitiam aos visitantes tocar-lhe as nádegas, cujo volume parecia estranho e perturbador ao europeu da época. Além disso, uma característica comum em algumas mulheres khoisan era possuir longos lábios vaginal. 


Alguns registros sugerem que chegaram a colocar
em Saartjie uma coleira ao redor de seu pescoço,
sendo tratada como um animal
          A sua exibição em Londres causou escândalo. A sociedade filantrópica African Association criticou a iniciativa e abriu um processo. Durante seu depoimento, Saartjie declarou, em holandês, não se considerar vítima de coação, aceitando metade da receita das exibições. O tribunal decidiu arquivar o caso. No final de 1814, Saartjie foi vendida a um francês, domador de animais, que a mantinha em condições mais duras. Foi exposta em Paris, tendo de aceitar exibir-se completamente nua, o que contrariava o seu voto de jamais exibir os órgãos genitais. 

           As celebrações da reentronização de Napoleão Bonaparte incluíram festas noturnas. A exposição de Saartjie manteve-se aberta durante toda a noite e os muitos visitantes bêbados divertiram-se apalpando o corpo da indefesa mulher. As pessoas não a viam como uma pessoa, mas sim um animal.

          Foi exposta a multidões. Era alvo de caricaturas, mas também chamou o interesse de cientistas e pintores. Seu corpo foi totalmente investigado e medido, com registro do tamanho das nádegas, do clitóris, dos lábios e dos mamilos para museus e institutos zoológicos e científicos. Com a derrota de Napoleão e o fim de seu governo, e a ocupação da França pelas tropas aliadas, em junho de 1815, as exibições tornaram-se impossíveis. Saartjjie foi levada a prostituir-se e tornou-se alcoólatra.

Análise de seu corpo

          O corpo de Saartjie foi definido sob a ótica entre a mulher africana "anormal" e a mulher branca "normal". Por conta de suas medidas, foi considerada uma mulher selvagem. Ela tinha uma estrutura mandibular peculiar, um queixo curto e um nariz achatado, que se assemelhava ao de um "negro". Ela foi considerada parte da "raça negra", o que na época era considerado o menor tipo de seres humanos. Ela, às vezes, foi comparada a um orangotango. Após sua morte, o corpo de Saartjie  foi enviado para o laboratório para exames. George Cuvier, do Museu Nacional de História Natural, quis testar a sua teoria de que, quanto mais primitivo era o mamífero, mais acentuados seriam seus órgãos sexuais e desejo sexual. O corpo de Saartjie nunca recebeu um enterro apropriado.

          Entre 1814 e 1870, houve pelo menos sete descrições científicas onde a anatomia dos corpos de mulheres negras eram comparadas. A dissecção do corpo de Saartjie por Cuvier ajudou a moldar a ciência europeia. Ela e outras mulheres africanas que foram dissecadas eram referidas como hotentotes, para satisfação da elite francesa. A mulher selvagem era muito distinta do feminino civilizado europeu.

Legado



          Saartjie morreu no dia 29 de dezembro de 1815, por conta de uma doença inflamatória. George Cuvier, através de seus estudos, pode observar que seu objeto de estudo era uma mulher inteligente, com uma memória excelente. Além de sua língua nativa, ela falava neerlandês fluentemente, tinha um inglês razoável e algum conhecimento de francês.

          Seu esqueleto, órgãos genitais e cérebro foram preservados e colocados em exposição em Paris, até 1974, quando então foram retirados da visitação pública e guardados. Houve pedidos esporádicos para o retorno de seus restos mortais ao continente africano, começando na década de 1940. Um poema escrito em 1978, por Diana Ferrus, também descendente do povo khoisan, intitulado Eu vim para te levar para casa, desempenhou um papel fundamental  no estímulo ao movimento para levar os restos mortais de Saartjie para sua terra natal. 

            Após a vitória do Congresso Nacional Africano na eleição geral na África do Sul, o presidente Nelson Mandela solicitou  formalmente que a França devolvesse os restos mortais de Saartjie. Depois de muita luta, o governo francês aceitou o pedido em 6 de março de 2002. Seus restos mortais foram repatriados para sua terra natal, e foram enterrados em 9 de agosto de 2002, sobre Vergaderingskop, uma colina na cidade de Hankey, mais de 200 anos depois de seu nascimento. Atualmente, ativistas e acadêmicos consideram Saartjie um símbolo da exploração ocidental dos africanos e do racismo.

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