segunda-feira, 30 de maio de 2016

Quando o uso excessivo de certas palavras gera outro significado

      Quitute brasileiro. Termo pejorativo dado aos policiais militares. Rótulo para aqueles que têm uma ideologia política de extrema direita. A palavra "coxinha" é apenas mais uma dentre tantas que, por causa de seu uso excessivo, perdem o sentido. É o mesmo o que ocorre com palavras como "kafkiano", "ontológico", e "literalmente". Todas elas são acusadas de um uso impreciso. Por exemplo, a palavra "kafkiano" corresponde àquilo que remete aos livros do escritor Franz Kafka. É válida geralmente para situações de qualidade labiríntica, surreais, opressivas pelo aspecto de pesadelo. Mas, sua derivação do nome do autor passa por uma redução interpretativa, uma vez que seus livros e estilo têm diversas outras características. Uma delas é o humor, não contemplado pelo sentido usual da palavra "kafkiano".

      Segundo o professor e linguista Henrique Braga vários aspectos podem ser considerados fatores desse processo, sendo o aumento da frequência de uso de determinadas palavras um deles. Com isso, muitas vezes, o valor semântico  se torna mais abstrato e abrangente. Como exemplo, o professor cita o uso da palavra "literalmente", em que muitas vezes não significa "ao pé da letra". "Vi uma manchete que dizia 'o gol do Botafogo literalmente caiu do céu'. Não era um lance em que o jogador chutou a bola para o alto e marcou o gol. No contexto, 'literalmente' ganhou sentido de ênfase, de que o gol indiscutivelmente veio a calhar".

Debate político

        Termos usados para identificar grupos tendem a se tornar mais abstratos. O projeto de lei de Eduardo Bolsonaro, propondo a criminalização do comunismo no Brasil, corrobora no sentido de igualar qualquer menção aos direitos humanos a um discurso "supostamente comunista". E a frequência de uso do termo acaba causando a simplificação. Além desta, palavras como petista e coxinha estão passando por reanálise. A primeira relação entre coxinha e conservadorismo tinha a ver com um modo pejorativo de tratar policiais. As pessoas da periferia, principalmente, tinham esse contato com o policial que parava no bar para comer coxinha e, para depreciar sua autoridade, ele passou a ser chamado de coxinha. E como o posicionamento conservador valida, de modo geral, ações truculentas da polícia, o apoiador do coxinha também passou a ser chamado de coxinha. A origem se perdeu e um novo processo de mudança já identifica a palavra a pessoas da classe média e média alta em geral.

        As palavras assumem significados para além do dicionário. E os significados podem se tornar mais genéricos, se ampliar, se somar e se sobrepor. Usados com frequência, estes termos podem se banalizar no debate político das redes sociais.

Fonte: Nexo Jornal

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