quinta-feira, 17 de março de 2022

Em busca de uma neutralidade para o uso da linguagem neutra

O ato de comunicar-se é condição inerente ao existir. Falamos, escrevemos, gesticulamos, e assim nos expressamos para o mundo, e ele, por conseguinte, através do comunica-se conosco, com o uso da linguagem, seja escrita, verbalizada ou gesticulada. O recado é transmitido e compreendido, se aceito ou não, aí já é outra discussão.

A linguagem é a forma pela qual transmitimos a nossa mensagem, símbolo de um povo, com características próprias que a definem como tal. Porém, se aprofundarmos ainda mais a discussão, e darmos à linguagem contornos afetuosos, abre-se um caminho para o hoje chamamos de linguagem neutra.

Entende-se por linguagem neutra, ou linguagem não binária, uma forma de se comunicar com o não uso dos gêneros tradicionalmente aceitos pela sociedade – masculino e feminino –, de modo a tornar a comunicação mais inclusiva e menos sexista.

Evidentemente que em tempos de discussões polarizadas, o tema causa conflitos entre direita e esquerda, conservadores e progressistas, homens e mulheres, terráqueos e alienígenas. Entre aceitação e não aceitação há um abismo de argumentos a serem considerados. O que não se pode, no entanto, é levar a discussão para a via da discriminação, com efeitos de minimizar questões caras à comunidade LGBTQIA+, onde o próprio existir já é mais que suficiente para haver o preconceito, pois são essas pessoas que não se identificam de forma binária quem reivindicam o uso das letras “e” ou “u” em vez de somente “a” ou “o”.

No Brasil, há hoje trinta e quatro projetos de lei estaduais para impedir o uso da linguagem neutra. A primeira lei aprovada e sancionada é de Rondônia, assinada pelo governador Marcos Rocha (PSL) em 19 de outubro, e proíbe a linguagem neutra na grade curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou privadas e em editais de concursos públicos. A discussão nas Assembleias Legislativas em torno da linguagem neutra é liderada majoritariamente por partidos de direita do espectro políticos-ideológico. Do total, trinta e um são projetos de autoria de homens. Em matéria publicada pela Agência Diadorim, a presidente da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) Symmy Larrat, argumenta que embora os deputados justifiquem em seus discursos a “defesa da família”, a política construída é “de morte”. “Com esse discurso de ódio, nos retiram da família, nos expulsam, nos colocam em vulnerabilidade”, diz.

Para o linguista Iran Melo, coordenador do Núcleo de Estudos Críticos do Discurso e Teoria Queer da Universidade Federal Rural de Pernambuco, a linguagem é também uma ferramenta de disputa de poder, de modo que as pessoas têm se reconhecido cada vez mais fora dos padrões masculino e feminino e então promovido novas maneiras de representatividade sobre suas identidades pela língua.

Segundo preconizava o linguista Joaquim Mattoso Câmara Jr (1904-1970) o masculino é o gênero não marcado, o feminino é o gênero marcado, específico, portanto, não sendo marcado, o masculino representa o genérico. Em linguística, o conceito de marcação é aquilo que não é convencional, é o outro, o anormal, o disruptivo.

No latim, língua de onde o português se originou, as palavras podiam receber três marcações de gênero: feminino, masculino, e neutro – este último com a terminação “u”. Na transição do latim para a língua portuguesa, a semelhança entre masculino e neutro fez com que ambas as categorias fossem resumidas em uma só, no que hoje entendemos como masculino. Para o latim, gênero neutro são os objetos inanimados, nomes de frutos e metais, bem como as palavras indeclináveis, infinitivos verbais, e termos e frases usados como se fossem substantivos.

A gramática conservadora, conhecida como a norma culta da língua, entende que não é necessário distinguir os gêneros de determinado grupo quando da presença de homens e mulheres. Portanto, utilizar “os alunos e as alunas foram ao parque” seria pleonasmo. Contudo, ao contrário da gramática tradicional, a linguística acredita que a língua é viva e sempre disposta a alterações, já a gramática é menos suscetível a mudanças.

Quem defende a ideia do uso de uma linguagem neutra entende que algumas pessoas podem se sentirem confortáveis sendo tratadas tanto no masculino como no feminino, mas, para outras, esses termos podem ser opressores, pois as empurram para um contexto em que elas não se sentem representadas. Por outro lado, há quem acredita que alterar a estrutura da língua portuguesa com essas adaptações seria uma medida extrema para atender a um grupo que não chega nem a 15% da comunidade LGBTQIA+.

Para a professora da Universidade Federal de Sergipe, Raquel Freitag, com o uso de “e”, a necessidade de novas formas gramaticais pode emperrar o sistema. Ela considera também que a linguagem não binária pode cumprir uma demanda identitária, mas tornar o entendimento complexo, excluindo mais pessoas. No entanto, ela pode ser apresentada em sala de aula, uma vez que o direito à diversidade está expresso na Base Nacional Comum Curricular, que diz ser importante contemplar o cânone, o marginal, o culto, o popular, a cultura de massa, a cultura das mídias, a cultura digital, as culturas infantis e juvenis, de forma a garantir uma ampliação de repertório e uma interação e trato com o diferente. 

No país que mais mata pessoas LGBTQIA+, talvez fosse o caso de primeiramente haver uma mudança no pensamento social para, só depois, a adaptação da língua. Pois como lembra o professor Thiago Mio Salla, em fala para o Guia do Estudante, a falta de aceitação do novo Acordo Ortográfico, proposto em 2009, e que muda apenas 2% de palavras na língua, já prova o quão difícil é fazer mudanças ortográficas na língua.

Texto: Elisa Marina

Fonte: 

https://www.google.com.br/amp/s/guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/linguagem-neutra-bobagem-ou-luta-contra-a-discriminacao/amp/



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