O ato de comunicar-se é condição inerente ao existir. Falamos, escrevemos,
gesticulamos, e assim nos expressamos para o mundo, e ele, por conseguinte,
através do comunica-se conosco, com o uso da linguagem, seja escrita,
verbalizada ou gesticulada. O recado é transmitido e compreendido, se aceito ou
não, aí já é outra discussão.
A linguagem é a forma pela qual transmitimos
a nossa mensagem, símbolo de um povo, com características próprias que a
definem como tal. Porém, se aprofundarmos ainda mais a discussão, e darmos à
linguagem contornos afetuosos, abre-se um caminho para o hoje chamamos de
linguagem neutra.
Entende-se por linguagem neutra,
ou linguagem não binária, uma forma de se comunicar com o não uso dos gêneros
tradicionalmente aceitos pela sociedade – masculino e feminino –, de modo a tornar
a comunicação mais inclusiva e menos sexista.
Evidentemente que em tempos de
discussões polarizadas, o tema causa conflitos entre direita e esquerda,
conservadores e progressistas, homens e mulheres, terráqueos e alienígenas. Entre
aceitação e não aceitação há um abismo de argumentos a serem considerados. O
que não se pode, no entanto, é levar a discussão para a via da discriminação,
com efeitos de minimizar questões caras à comunidade LGBTQIA+, onde o próprio
existir já é mais que suficiente para haver o preconceito, pois são essas
pessoas que não se identificam de forma binária quem reivindicam o uso das
letras “e” ou “u” em vez de somente “a” ou “o”.
No Brasil, há hoje trinta e
quatro projetos de lei estaduais para impedir o uso da linguagem neutra. A
primeira lei aprovada e sancionada é de Rondônia, assinada pelo governador
Marcos Rocha (PSL) em 19 de outubro, e proíbe a linguagem neutra na grade
curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou
privadas e em editais de concursos públicos. A discussão nas Assembleias
Legislativas em torno da linguagem neutra é liderada majoritariamente por
partidos de direita do espectro políticos-ideológico. Do total, trinta e um são
projetos de autoria de homens. Em matéria publicada pela Agência Diadorim, a
presidente da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais) Symmy Larrat, argumenta que embora os deputados
justifiquem em seus discursos a “defesa da família”, a política construída é “de
morte”. “Com esse discurso de ódio, nos retiram da família, nos expulsam, nos
colocam em vulnerabilidade”, diz.
Para o linguista Iran Melo,
coordenador do Núcleo de Estudos Críticos do Discurso e Teoria Queer da
Universidade Federal Rural de Pernambuco, a linguagem é também uma ferramenta
de disputa de poder, de modo que as pessoas têm se reconhecido cada vez mais
fora dos padrões masculino e feminino e então promovido novas maneiras de
representatividade sobre suas identidades pela língua.
Segundo preconizava o linguista Joaquim
Mattoso Câmara Jr (1904-1970) o masculino é o gênero não marcado, o feminino é
o gênero marcado, específico, portanto, não sendo marcado, o masculino
representa o genérico. Em linguística, o conceito de marcação é aquilo que não
é convencional, é o outro, o anormal, o disruptivo.
No latim, língua de onde o
português se originou, as palavras podiam receber três marcações de gênero:
feminino, masculino, e neutro – este último com a terminação “u”. Na transição
do latim para a língua portuguesa, a semelhança entre masculino e neutro fez
com que ambas as categorias fossem resumidas em uma só, no que hoje entendemos
como masculino. Para o latim, gênero neutro são os objetos inanimados, nomes de
frutos e metais, bem como as palavras indeclináveis, infinitivos verbais, e termos
e frases usados como se fossem substantivos.
A gramática conservadora,
conhecida como a norma culta da língua, entende que não é necessário distinguir
os gêneros de determinado grupo quando da presença de homens e mulheres.
Portanto, utilizar “os alunos e as alunas foram ao parque” seria pleonasmo. Contudo,
ao contrário da gramática tradicional, a linguística acredita que a língua é
viva e sempre disposta a alterações, já a gramática é menos suscetível a
mudanças.
Quem defende a ideia do uso de
uma linguagem neutra entende que algumas pessoas podem se sentirem confortáveis
sendo tratadas tanto no masculino como no feminino, mas, para outras, esses termos
podem ser opressores, pois as empurram para um contexto em que elas não se
sentem representadas. Por outro lado, há quem acredita que alterar a estrutura
da língua portuguesa com essas adaptações seria uma medida extrema para atender
a um grupo que não chega nem a 15% da comunidade LGBTQIA+.
Para a professora da Universidade
Federal de Sergipe, Raquel Freitag, com o uso de “e”, a necessidade de novas
formas gramaticais pode emperrar o sistema. Ela considera também que a
linguagem não binária pode cumprir uma demanda identitária, mas tornar o
entendimento complexo, excluindo mais pessoas. No entanto, ela pode ser
apresentada em sala de aula, uma vez que o direito à diversidade está expresso
na Base Nacional Comum Curricular, que diz ser importante contemplar o cânone,
o marginal, o culto, o popular, a cultura de massa, a cultura das mídias, a
cultura digital, as culturas infantis e juvenis, de forma a garantir uma
ampliação de repertório e uma interação e trato com o diferente.
No país que mais mata pessoas
LGBTQIA+, talvez fosse o caso de primeiramente haver uma mudança no pensamento
social para, só depois, a adaptação da língua. Pois como lembra o professor
Thiago Mio Salla, em fala para o Guia do
Estudante, a falta de aceitação do novo Acordo Ortográfico, proposto em
2009, e que muda apenas 2% de palavras na língua, já prova o quão difícil é
fazer mudanças ortográficas na língua.
Texto: Elisa Marina
Fonte:
https://www.google.com.br/amp/s/guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/linguagem-neutra-bobagem-ou-luta-contra-a-discriminacao/amp/