sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Ler e ver Carolina Maria de Jesus

 

Depois do sucesso de Quarto
de Despejo, Carolina Maria de
Jesus morre pobre e 
ignorada pelo público 


Lemos em nossas salas de estar Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Lemos seu infortúnio despejado em papel nas páginas de seu 
Quarto de Despejo (Ed. Ática). Despojados em nossos sofás, fixamos os olhos nos dias morosos que se seguem dos idos 1950. É tão 2023 que a ficção que desejaríamos ver escrita, é na verdade a realidade que não gostamos de ser contada nos parcos cruzeiros que equivalem a  uma sopa de ossos, ou um pão duro recheado com desilusão. 

Na cozinha dos nossos desejos, o estrogonofe na panela não nos faz sorrir, mas o mesmo prato faria Carolina gargalhar, e seus filhos se acharem ricos com o banquete na mesa. Domingo tem macarronada? Tem, sim senhor, e quarta-feira, feijoada, as nossas graças sem risadas. 

Carolina, caso fosse contemporânea dos nossos dias, e o seu martírio televisionado - como o fora nos seus 1960 -, estaria você prestes a deixar o seu barraco para ganhar em minutos uma mansão de porcelanato, talvez nome para outro livro. Bastaria a seus filhos nos entreter com números circenses, como parte do quadro de um programa dominical, ou então que você dramatizasse em discurso a sua própria história a fim de manter alta a audiência de uma atração matinal, e de preferência com a sua roupa mais surrada, para fazer chorar a apresentadora elegantemente vestida. Por conseguinte, ela pediria para você contar as brigas na sua Canindé protagonizadas por bêbados esfarrapados e mulheres casadas que faziam pornografia com seus amantes, sob os olhares dos filhos da Canindé. Carolina, um instante. Meu recado é para você que está aí em casa. Está esperando o que para adquirir o seu seguro-residencial e assim proteger os seus bens diante da violência urbana que só cresce? Adquira agora mesmo, basta direcionar a câmera do seu celular para o QRCode que está aparecendo aí na sua tela. E no próximo bloco, mais história da escritora Carolina Maria de Jesus, não saia daí".

Gozamos e gozaríamos com as suas narrativas, Carolina, e por pouco tempo, porque como diz a sempre atualíssima máxima jornalística: “o jornal de hoje embrulha o peixe de amanhã”. E na manhã do dia seguinte estaríamos a nos emocionar - e por breve período, não nos esqueçamos disso - com outra história de "superação", como bem nos ensinam os coaches midiáticos.

Os 118 barracos da Canindé de Carolina Maria de Jesus multiplicaram-se por dez, cem, mil, e neles quantas Carolinas habitam os quartos de despejo - sem desejos - que sobrevivem em contemporaneidade com as salas de estar? Em 2023 Audálio Dantas não adentraria a favela, certamente assombrado pela atuação do tráfico e da milícia, mas muito provavelmente encontraria com uma Carolina perambulando pelas ruas de São Paulo a catar qualquer coisa com seus filhos sem pai, onde um deles - por sorte - seria apenas parado (e não morto) pela polícia após telefonema do cidadão de bem ao assustar-se com a presença do garoto que vende balas no farol.

Carolina, aquela sociedade que te explorara quando lhe pagava uma mixaria pelos recicláveis que você catava e pelos manuscritos que escrevia, hoje escancaradamente confirma que a sala de estar nunca olhou para o quarto de despejo, as moradias das Canindés em que habitam milhões de Carolinas, suas descendentes de infortúnio.

Por Elisa Marina 

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