quinta-feira, 4 de maio de 2023

Gentilezas a uma demanda para a subserviência

Bajulação que enlaça com uma demanda
para uma subserviência

O coach idealiza e persuade. Aquele que o escuta, convocado à ação, aceita sem questionar. E então novos modelos de atendimentos são estabelecidos nas relações comerciais, onde afeto é a palavra da vez. Sai o velho conceito de insistir na venda dentro de uma abordagem formal e direta entre os sujeitos para dar entrada com vistas a criar meios de afeição ao outro, no caso o cliente,  a fim de tocar em seus afetos para daí extrair o objetivo final, que é a venda. Logo, o café cordialmente oferecido traz, em última instância, a mensagem subliminar de que aquela gentileza irá receber como troca a compra de um produto ofertado.

Frente a esse competitivo capitalismo selvagem, onde a cada instante surgem novas práticas  com modelos de se buscar um diferencial frente ao concorrente, é preciso inovar para se destacar,  vender para lucrar. E então chegamos ao admirável novo mundo das gentilezas nos estabelecimentos comerciais, que só acontecem porque tem um apelo inscrito naquele a quem a cordialidade é direcionada.

O cliente entra, e o que antes resumia-se a um simples cumprimento entre as partes, hoje, mostra-se como abertura a laços afetivos. "Olá, bom dia. Me chamo Jéssica, e você, meu amor?". Sim, sou o amor de quem sequer conheço, e esse tal "amor" será repetido à exaustão até a finalização da venda. "Quer um café? Procura o que?". Estou numa farmácia e o tratamento me faz lembrar uma loja de sapatos. "Quero uma amoxicilina de couro número 36", penso. "Me informa o seu CPF, amor, para ver se tem desconto". Aqui, o atendimento totalmente personalizado, me garante um desconto especial, e somente para mim, chupa invejosos. Qualquer semelhança com o cara que disse ter ligado para você e somente para você porque bateu saudades não é mera coincidência.

Na paquera com o caixa, também meu amor, (sou dele e ele é meu) ele também me pergunta pelo meu CPF, dessa vez me faço de difícil e digo que não vou lhe informar. Adoro quando eles fazem biquinho e me convencem da possibilidade de um desconto ainda maior. Como sou fácil.

Vou para a loja de roupas e por lá a suruba se dá assim que entro no estabelecimento, com muitos amores vindo ao meu encontro. "Oi meu amor". Vou dar uma olhada apenas. "Tudo bem, meu amor, qualquer coisa é só me chamar". Não chamo, estou no fundo da loja e fora do radar dela, mas próxima ao olhar do rapaz que elogia a minha bolsa dizendo que o modelo tem tudo a ver com a vestido no manequim sem rosto. "Estava te esperando". Um manequim sem vida intuía que eu entraria na loja para vê-lo?

Na doceria, a formalidade é elevada à quinta potência quando sou chamada de senhora. Logo hoje que coloquei essa botinha tão modernosa e uma saia nada casual? Sinto-me projetada à Colombo de 1920, com um casquete cinza discreto e um vestido longo esbarrando no chão de mármore. Pausa dramática. Sou uma mulher negra, na Colombo de outrora eu não estaria sendo servida, mas servindo a madames insuportáveis que me olhariam de cima abaixo e de quem aceitaria passivamente toda e qualquer petulância.

Voltemos a 2023, ano em que daqui uns dias serão completados 135 anos do fim de uma escravidão que durou quase quatrocentos anos  mas que até hoje da sinais de  que suas marcas não saírão da sociedade tão cedo.

Os casos acima mostram que a subserviência é muito mais uma resposta a uma demanda social do que uma crítica aos funcionários que para defender o pão de cada dia são obrigados  a obedecerem cartilhas de boas práticas na relação com os clientes. Vivemos num país com resquícios coloniais onde babás ainda vestem-se de branco mesmo que sua função exige interagir com a criança com brincadeiras que certamente farão sujar o uniforme de trabalho. Porém, seus patrões formam a massa dos sujeitos que ostentam seus títulos, com evidências claras de exigir uma subserviência daqueles a quem julgam como profissões inferiores. Ter do outro o agrado em demasia revigora egos antes reprimidos. Não basta apenas apresentar a mercadoria, é preciso bajular o cliente.

"Sua compra foi recusada". Acho estourei o limite do cartão. "Aceitamos pix". Estou sem saldo na conta. A cara de paisagem é um abismo entre nós. Cadê, agora, o amor? E os votos de amor na riqueza e na pobreza? Sou, então, tomada de uma saudade, quando o amor era declarado em um cartão, mas naqueles de papel.

Por Elisa Marina

  .  Porque vivemos num país onde babás ainda usam branco mesmo que para brincar - e se sujar - nos parques, com sujeitos que dizem de seus títulos muito mais do que de seus, carentes de paparicos e atenção. Ter no outro o papel daquele que lhe agrada em demasia revigora egos antes reprimidos. Não basta apenas apresentar-se, é preciso bajular.
"Sua compra foi recusada". Ih, estourei o limite do cartão. "Aceitamos pix". Estou sem saldo. A cara de paisagem é um abismo entre nós. Cadê, agora, o amor? E os votos de na riqueza e na pobreza? Sou tomada de uma certeza: o amor


      .  Porque vivemos num país onde babás ainda usam branco mesmo que para brincar - e se sujar - nos parques, com sujeitos que dizem de seus títulos muito mais do que de seus, carentes de paparicos e atenção. Ter no outro o papel daquele que lhe agrada em demasia revigora egos antes reprimidos. Não basta apenas apresentar-se, é preciso bajular.
"Sua compra foi recusada". Ih, estourei o limite do cartão. "Aceitamos pix". Estou sem saldo. A cara de paisagem é um abismo entre nós. Cadê, agora, o amor? E os votos de na riqueza e na pobreza? Sou tomada de uma certeza: o amor

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