terça-feira, 23 de maio de 2023

A bolha e a placenta, aconchego e acolhimento

 

O Mito da Caverna é uma alegoria narrada por
Sócrates que ilustra a busca pela verdade/
Ilustração: Sociologia Líquida

Numa comparação metafórica, poderíamos dizer que a bolha está para o sujeito assim como a placenta para o bebê, pois no aconchego e no modo passivo em receber os nutrientes responsáveis pelo seu desenvolvimento biológico é que a vida intrauterina se desenvolve. Nos grupos sociais, que podem ser tanto de ordem religiosa quanto política e até culturais, as informações circulam num ambiente acolhedor e aconchegante aos sujeitos pertencentes a estes grupos, que as recebem de modo passivo e acolhedor, abrindo caminhos para a confirmação de um pertencimento nos mesmos, formando, assim, uma bolha. Compactuar com as falas, copiar modos de agir e se vestir dos demais integrantes do grupo, é fazer valer esse pertencimento, que fora dele, desse organicismo vivo, cabe ao indivíduo buscar por meios próprios a fim de garantir a sua existência. Um feto não se desenvolve fora da placenta, logo um indivíduo é capaz de subsistir alheio aos grupos sociais? 

Tomando como exemplo o Mito da Caverna* contado por Sócrates na obra A República, de Platão, somos muitas vezes pessoas que estamos trancafiadas dentro de uma caverna, amarrados com correntes pelos pés com a incapacidade de virar a cabeça para a abertura da caverna. E nós estamos olhando para a parede, atrás de nós tem uma pequena mureta onde passam pessoas com coisas, só vemos a sombra das coisas na parede. Como tem ruído, a sensação é que essas coisas que estão na parede falam e têm vida. Um dia, conta Platão, uma das pessoas que estava na caverna escapa, conseguindo romper com o grilhão que a mantinha por lá. Conforme explica o filósofo Mario Sérgio Cortella, no episódio Bolha do podcast A Grande Fúria do Mundo, “qual é a primeira coisa que acontece quando você sai de uma caverna? Perde a capacidade de enxergar, porque a luz do sol é forte. E a tendência de quando se sai da caverna, ou da bolha, é querer voltar correndo para dentro dela porque o mundo externo é muito desconfortável, fere a visão, fere a percepção. Quando você vai pouco-a-pouco se habituando [com o mundo externo] e vê que o que está fora da caverna também existe e, muitas vezes, é mais autêntico do que aquilo que está dentro da caverna, e se você é alguém que tem afeto pelas pessoas que ficaram, você volta pra dizer a elas que o que está na caverna não é verdade, ou não é tão-somente uma única verdade. E qual é a consequência disso tudo? [As pessoas da caverna] matarem a pessoa que voltou, pois esta busca (para o grupo) tirar a ilusão [verdade] de suas crenças”.

No livro Conformismo, Charles A. Kiesler e Sara B. Kiesler, dentro da perspectiva da psicologia social, discorrem sobre a influência do pertencimento em grupos a partir de dois efeitos, a obediência e a aceitação íntima. Como exemplo, os autores iniciam o livro com uma nota publicada em setembro de 1954, num jornal no norte dos Estados Unidos, que dizia o seguinte: Profecia de Planeta. Clarion diz à cidade: fuja dessa enchente, ela nos atingirá no dia 21 de dezembro. É o que o espaço diz a uma habitante de nosso subúrbio.

A profecia tinha sido dada por uma “Sra. Keech”, que afirmava não ser sua, mesmo assim conseguira reunir alguns seguidores que também acreditavam na profecia e se preparavam para o grande acontecimento. Quando em 21 de dezembro não houve a tal enchente, muitos deixaram o grupo. No entanto, as pessoas mais comprometidas com a profecia não apenas resistiram em suas crenças depois desse desmentido, como também começaram a recrutar novos crentes e novos membros para o grupo.

Todos nós pertencemos a grupos de pessoas. Além disso, tais grupos influem em nós. Nosso comportamento e nossa atitude se modificam a medida que interagimos com os outros. Nem todos os participantes do círculo da Sra. Keech acreditavam em sua profecia. Alguns eram cépticos mas tinham outras razões para agir de acordo com o que era esperado e exigido pelo grupo. Os dois tipos de pessoas – os cépticos obedientes e os crentes verdadeiros – eram conformistas, pois apresentavam alguma forma de mudança na direção das expectativas do grupo. Esses dois tipos de conformismo foram denominados pelos psicólogos sociais como obediência e aceitação íntima.(...) A obediência refere-se ao comportamento explícito que se torna mais semelhante ao comportamento que o grupo deseja que seus membros apresentem, independentemente das convicções íntimas do ator. A pessoa se comporta como o grupo deseja que o faça, mas, na realidade, não acredita naquilo que está fazendo. A aceitação íntima refere-se a uma mudança de atitude ou crença, e na direção das atitudes e crenças do grupo. Nesse caso, a pessoa pode, não apenas agir de acordo com os desejos do grupo, mas também mudar suas opiniões, de forma que passe a acreditar naquilo que o grupo acredita.

O nascimento é um processo doloroso que obriga o bebê a deixar para trás o seu pequeno e recluso mundo, sua caverna, e romper com a placenta, sua bolha, que até então o mantinha vivo, para a partir de então aprender a viver fora dela. Assim somos, depois de sairmos dessa placenta, e uma vez crescidos continuamos enlaçados a bolhas de aconchego em busca de pertencimentos; romper com os grilhões que nos mantém vivos nesses grupos é um processo de dor, por isso vai de cada um perceber quando é a hora do próprio parto, mas claro, desde que se queira nascer.

*O Mito da Caverna, de Platão, contada por Sócrates, é uma alegoria que ilustra a natureza da realidade e a busca pela verdade. Na história, Platão descreve um grupo de pessoas que foram criadas e vivem em uma caverna desde o nascimento. Todos estão acorrentados, com as cabeças viradas para a parede, sem poder mover-se ou ver a luz do sol. O único mundo que conhecem é aquele que elas enxergam projetado na parede da caverna. Ou seja, a única realidade que os habitantes da caverna vivencial são as sombras dos objetos que passam em frente a uma fogueira. Eles não têm conhecimento do mundo exterior. No entanto, quando um dos prisioneiros consegue se libertar e sair percebe que a realidade que ele conhecia antes era uma sombra da verdadeira realidade.

Por Elisa Marina

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