terça-feira, 17 de janeiro de 2023

A minha inexistente homofobia passou por essa porta

Entrada do prédio localizado na Rua Major
Sertório/Foto: Google Maps
Efervescência cultural nos anos de 1980, a região central da capital paulista agrupava bares e casas noturnas frequentados, em sua maioria, pela comunidade acadêmica, os intelectuais, escritores, jornalistas, e pessoas que pertenciam ao que se chamava à época movimento GLS, sigla para Gays, Lésbicas e Simpatizantes, enquanto que eu era apenas uma testemunha ocular no alto dos meus dez, onze anos de idade.

Costumo dizer que eu não tive tempo para ser homofóbica. Explico. Eu tinha um tio - irmão de consideração de meu pai – e vítima fatal da Aids – que morava na região da República e para onde eu, meus pais e meu irmão íamos aos sábados, a família heteronormativa que morava na pacata cidade de Poá. O apartamento dele, localizado na Rua Major Sertório, e próximo de todo aquele agito, mostrava para mim uma realidade bem oposta da provinciana cidade que não tinha uma vida cultural tão cheia de cores como a que eu via nos finais-de-semana na São Paulo com as suas diferentes tribos.

Evidentemente que o meu olhar para tudo isso, guardado ainda na memória da mulher de 48 anos de idade de hoje, não era elaborado com tanta propriedade assim. E claro que por razões óbvias eu não frequentava as boates que o hoje denominado público LGBTQIAP+ costumava ir, portanto, não tenho repertório para falar a respeito. Mas o que mais me encantava na região era haver ali uma atmosfera que não sei exatamente explicar qual, ambientada por pessoas das artes, da escrita, mundo este que mais tarde eu viria a pertencer. Tinham ali escritores e jornalistas renomados que eu sequer conhecia, mas eles estavam lá como viriam a confirmar mais tarde em entrevistas em que diziam ter frequentado, dentre tantos lugares, o Espaço Pirandello, um misto de restaurante e antiquário, e onde comi um macarrão adocicado, sem ter a mínima noção do que se tratava o prato de nome esquisito do cardápio. Devo ter pedido pelo nome diferenciado, um hábito que não mudou muito.

Foram tempos, diria, responsáveis para que eu me apaixonasse por São Paulo. Dizem que o amor real é um afeto sem razão de existir, uma explicação que eu concordo, porém abro exceção para exprimir o meu bem-querer à capital paulista.

Logo ali, no terraço do primeiro andar, com 
uma simplória cobertura, era de onde eu via
as travestis com seus vestidos justos e
brilhantes/Foto: Google Maps

E quando não íamos a restaurantes, o fervo ocorria numa quitinete decorada com esmero localizada no número 304 da já mencionada Major Sertório, a casa do querido Roberval Amâncio. Meus pais, meu irmão, e eu ouvíamos histórias de seus amigos, todos homossexuais e sempre em maior número além daqueles quatro interioranos poaenses.

São tempos que guardo com carinho na memória com um curto circuito de emoções: caem lágrimas festivas que por vezes saem de cena (e devem) para deixar entrar a tristeza pela dor de sua partida tão cedo quando ainda estava na casa dos cinquenta anos de idade.

Os anos de 1980 trouxeram o HIV, 2020, o Sars-Cov2, dois vírus devastadores - cada qual dentro da sua realidade, evidentemente –, mas que hoje apresentam tratamento, à Aids e à Covid-19, respectivamente, ambos muito mais avançado quando comparado aos anos de pico das duas pandemias. Sinal claro de que a Ciência avança com vias de buscar a cura desses vírus, só não encontrou até agora um tratamento eficaz para o vírus da homofobia, este tão mortal como os outros dois, o que sabemos não ser um problema das ciências, mas da sociedade como um todo.   

Texto: Elisa Marina

Nenhum comentário:

Postar um comentário