Ela vai despertar depois de ter tido o seu pior pesadelo, achando que aquele tinha sido o seu pior pesadelo, embora aquele fosse só o prenúncio do pior pesadelo que estaria por vir.
Ela vai sentar-se na cama. Vai virar de lado, e vai ajustar os dois pés no par de chinelos de dedo que ele havia lhe presenteado dois dias antes. Ela vai então lembrar-se disso ao vê-los marcados em seu corpo. E ela vai odiar-se por não ter jogado todos pela janela.
Ela vai levantar-se. E vai adorar sentir o piso frio do porcelanato que seu corpo aquecera na noite anterior. Ela vai lembrar-se da noite anterior, e na sequência vai se arrepender por não ter dito o não.
Ela vai lembrar do bar, da cadeira vazia que o aguardava, do trânsito, dos produtos para a maquiagem na penteadeira, do armário aberto, do banho demorado, e do sim ao telefone. Ela vai ser tomada de arrependimentos.
Ela vai então caminhar até o armário, tirar de lá o casaco preto de lã extremamente pesado. Ela vai ter dúvidas se o peso nos ombros é do corpo dolorido pela noite de chuvas, lágrimas e tempestades.
Ela vai sair do quarto, passar pela sala, atravessar a cozinha, descer as escadas do quintal, então ela vai abrir o portão.
Ela vai pisar na calçada esburacada, e de dentro dos buracos vai tirar pesadas pedras. Vai colocar três delas em cada um dos bolsos. Ela vai olhar para à esquerda e vai atravessar a avenida, ela vai subir no canteiro, ela vai olhar para a direita e vai atravessar a avenida. Vai pisar no calçadão, dar oito passos e afundar os pés na areia fofa e úmida e branca. Ela vai olhar para trás e ver as marcas dos pés e o desenho do seu passado. Vai ver seus medos. Vai ver seus amores. Vai rir chorando. Vai lembrar-se dos lenços úmidos na cômoda, da calça com a barra por fazer, da conta bancária no vermelho, dos abortos naturais e clandestinos, e do bebê que não acordou depois da mamada. E ela vai chorar. E vai rir da velha da casa ao lado, sabendo que a velha da casa ao lado era uma estúpida velha da casa ao lado. Ela vai parar. E vai entrar na água, e vai ver os pés sumirem. Ela vai continuar andando mesmo que o peso da água e dos anos dificultem o caminhar de seu peso em anos de idade.
Ela vai deixar boiar as folhas dos livros escritos e os que ainda estariam por serem escritos na capa vermelha mal-acabada. Ela vai sentir a água na barriga, nos seios, no pescoço, e no queixo. Ela não vai sentir medo, porque quer seguir adiante com o seu propósito. Ela vai ver a água bem debaixo de seus olhos tapar a boca dos discursos proferidos, dos beijos dados, dos beijos roubados e dos beijos evitados, saborosos beijos imaginados. Ela vai perceber a água chegar ao nariz que cheirou flores e nucas, e aos olhos que lhe mostraram cenários reais, imaginários e hipotéticos, todos eles em suas histórias.
Ela vai ver as ondas. Ela vai mergulhar. E ela vai afundar. Ela vai sentir o corpo tocar o chão do mar. Ela não vai ver mais nada porque seus olhos estarão fechados. Ela vai sentir a respiração cansarem os pulmões. Ela vai querer gritar. Ela vai começar a perder os sentidos. Ela vai dar início à morte de seus personagens. E vai matar suas histórias junto com seus desfechos. Ela vai matar a todos eles. E com eles ela vai morrer como personagem de outros escritos, porque ela vai viver por ter desejado morrer como Virgínia Wolf.
Texto: Elisa Marina
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