terça-feira, 10 de maio de 2022

Nando 1 e Nando 2, personagens de uma época sem smartphones

Fachada da escola "Professor
Geraldo Justiniano de Rezende e Silva/
Foto: Oi Diário (2018)
Antes de ler esse texto, exclua toda a sua bagagem de comunicação nesses tempos modernos, a saber, WhatsApp, Messenger, Telegram... porque o propósito dessa escrita é voltar aos tempos em que digitar era o verbo que se tornaria recorrente num futuro muito distante da nossa imaginação. Voltemos, então, a 1992. 

Depois de trinta anos, seria um pouco difícil para mim descrever com exatidão em qual dia do calendário escolar tudo começou, mas a memória é capaz de narrar a história como um todo. Nós éramos duas amigas inseparáveis, alunas de um enfadonho curso de Magistério.

Nenhuma das duas tinha a menor vocação para a arte de lecionar, mas estávamos ali como estudantes que buscavam por um emprego tão logo a formatura ocorresse, e que se tudo saísse dentro dos conformes, em três anos seríamos professorinhas primárias a escrever em lousas verdes de alguma sala de aula do município paulista de Suzano, ou região. Porém, até que o diploma estivesse fixado na parede, era preciso atravessar os anos daquele curso que era um porre de aturar, mas que com o tempo buscamos meios de torná-lo, digamos, menos moroso. 

 

 Iniciamos o curso com uma classe lotada de mulheres de idades variadas, algumas delas até filhos tinham, logo os assuntos fugiam totalmente do que os nossos hormônios em polvorosa queriam ouvir. Onde estavam os garotos? Nas salas do Inciso, o filho mais velho do antigo Segundo Grau, e pai do atual Ensino Médio, nos cursos de Contabilidade e Processamento de Dados, longe do nosso quadrilátero abarrotado de XX, ansiávamos por XY, e o meio mais fácil de se chegar até eles, ainda dentro da sala, era se comunicar através das carteiras escolares, as mesinhas esverdeadas onde a escrita a lápis simbolizavam o extravasar de uma rebeldia juvenil.

Modelo de carteiras escolares nos
 anos de 1990
Então, na matéria amadeirada fez-se a escrita, da escrita, a mensagem, e da mensagem a paquera, e assim se deu as correspondências das garotas do Magistério diurno com os mocinhos da Contabilidade do noturno, eram eles Nando 1 e Nando 2, os Fernandos de nossas vidas escolares.

Se hoje, a expectativa por uma resposta por WhatsApp causa ansiedade, o pior era naqueles tempos enviar a mensagem numa sexta-feira e ter que esperar pela resposta na segunda-feira seguinte, por sinal, uma lição que eu deveria ter aprendido. Mas quem iria imaginar que teríamos décadas depois descendentes rebeldes da comunicação, sendo o WhatsApp o mais conhecido dentre todos, cuja proposta é proporcionar uma troca de mensagens instantâneas, a depender do usuário, evidentemente.

Os nossos Nandos eram ousados. Com o tempo, as conversas foram ganhando ares picantes e empolgantes, e o virtual estava a ponto de deixar o campo do imaginário para se tornar real mais pela insistência deles do que nossa. Acredito que nossos inconscientes já figuravam medos pré-existentes, com um iminente primeiro encontro, e como gentis cavalheiros propuseram vir ao nosso encontro. Vale lembrar que nós não tínhamos a mínima noção de como seriam as aparências dos nossos Nandos, até então amores imaginários.

Dada a nossa empolgação, o assunto já tinha se espalhado pela sala de aula, de modo que no dia combinado para o dating, a audiência feminina vivia a expectativa do tão esperado encontro. A nosso favor, tínhamos a localização da sala, cujas janelas para a rua iriam facilitar uma espiadinha antes para o contato ser menos impactante, no caso de os mocinhos não corresponderem com o que o nosso imaginário nos deixava sonhar. E de fato, como prevíamos, eles não eram gatinhos, ou como diriam as nossas mães, não eram pães, talvez bolachinhas cream-cracker, sem gosto algum, insossas tanto quanto aquele Magistério. 

Acredito que, inconscientemente, foi com essa experiência que nunca dei crédito para paqueras virtuais, porque idealizar uma figura a partir da sua escrita galanteadora é querer forçosamente que a magia se ajuste ao real, o que a meu ver é um grande equívoco. Ali, nossos Nandos não nos encantaram o tanto quanto suas mensagens românticas e divertidas assim o fizeram, porque provavelmente a magia da paquera estivesse na caligrafia que nos fazia imaginar um beijo da boca de um corpo que somente existia na mente, e por lá todas essas sensações devessem  ficar. Contudo, fomos além, arriscamos ao levarmos o nosso simbólico para o real.

É divertido relembrar aquele tempo. Essa história havia caído no esquecimento, mas foi recordada na quinta-feira, 5 de maio, durante conversas de encerramento de uma oficina de escrita para a qual fui convidada a organizar. O papo fluía sobre a comunicação por WhatsApp, meio pelo qual os sujeitos são revelados. Há os que respondem, os que ignoram, os que apenas dão bom-dias, os que trocam piadinhas ou textos políticos, os que fingem não ler… Foi aí que ao acaso eu pensei naquele tempo gostoso de escrever sem o medo bobo de achar estar incomodando o destinatário por simplesmente escrever, porque estes estão entediados demais, irritados demais, cansados demais, é o "estar de saco cheio" que os conduz a sujeitos escravizados por essa política neoliberal de aprisionamento dos corpos, onde dizer que não se tem tempo ao outro é dizer da sua importância no mundo, logo, os gentis e cordiais são os desocupados.

“Não dá para dizer tudo”, foi o tema da referida oficina. Nem escrever tudo, nem postar tudo. Mas dá para deixar de ser mais do mesmo? E retomar a nostalgia de uma comunicação que falava e ouvia, lia e respondia, um diferencial num mundo cada vez mais surdo e mudo. “Por um corpo escrita”, o subtítulo da oficina diz muito desses tempos de emojis, substitutos das palavras. Nossos corpos desejam falar, e também serem escutados.

Texto: Elisa Marina

Foto: Oi Diário

2 comentários:

  1. Adorei!! Sem saudosismo, mas era incrível a sensação de receber uma carta, um bilhete e viajar no tempo com a escrita, imaginar o momento da escrita, a oportunidade da escrita.

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    1. Verdade, eram momentos incríveis... ou podem voltar a ser.

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