sábado, 27 de maio de 2023

Arte em vidas tatuadas pelas mãos de Edson Canela

 

A arte de Canela também se revela nos 
 quadros de pinturas a óleo/ 
Foto: Arquivo Pessoal

Partindo de uma filosófica análise sobre o próprio trabalho, em que tatuagem não é arte sobre arte, e sim, arte em vidas, Edson Canela, ao longo de seus quarenta anos de profissão, tem dado vida à sua arte nas mais de três dezenas de milhares de corpos que se fizeram – e se fazem – de telas para que um novo desenho ganhasse vida. No entanto, seria razoável dizer que tatuagem é uma sobrevida arte que se mantém viva até a finitude da tela que se permitiu tatuar, no entanto, como toda e qualquer manifestação artística, ela também sobrevive à existência do próprio artista, mesmo que nela este não imprima uma assinatura.

Tomo a liberdade de dizer que tatuagem é a arte sem identificação do artista, porém há ali uma cumplicidade entre tela e tatuador, e nesse caso pode-se afirmar que ter sido pioneiro e único tatuador por cerca de quinze anos e num tempo em que rebeldia e tatuagem andavam de mãos dadas, Canela tem voz consistente para traduzir as palavras e ideias em uma arte, conforme ele mesmo se descreve.

LABAREDA CARMIM - Um dia, seu corpo é uma tela em branco. Aí então você decide e, com muita insegurança, faz uma pequena tatuagem. Gosta. Faz outra, mas ouve falar da tal lenda que diz que “dá azar ter tatuagens em números pares”. E então, quando vê, já são cinco, sete, dezenas... Que vício é esse que nos atenta a deixar de lado a incômoda dor que o processo de tatuagem causa para tatuarmos tantas outras vezes o nosso corpo?

Sua especialidade é em tatuagem tradicional,
em preto-sombra e free-hand/
Foto: Arquivo Pessoal

Canela – No meu ponto de vista, geralmente, a pessoa pensa muito em relação à primeira tatuagem, [através da qual] ela quebra os próprios preconceitos, pois sempre tem alguém da família que é contra. Existe certa barreira com essa primeira tatuagem. É muito bom que a primeira seja feita de espontânea vontade, porque aquele que faz por fazer está sujeito ao arrependimento, aí faz a primeira, geralmente é pequena, embora hoje em dia nem tanto. Mas se ela escolheu um bom profissional e fez uma bela tatuagem ela acaba partindo para outras. Nesse sentido, não escolher bem, ou fazer por impulso é bem perigoso. A dor é superável pela vontade de fazer, e pra quem já fez sabe que não é uma dor assim tão grandiosa. No entanto, a mulher é mais resistente a dores do que os homens.

Não vejo como um vício [optar por várias tatuagens], mas como uma superação aos medos e dúvidas iniciais, o que agrega alguma força de vontade de querer repetir. Além disso, números pares não dão azar. É pura lenda.

LC- A pergunta acima tem a ver com a minha história. Fiz a primeira somente aos 27 anos de idade, talvez afetada por falas preconceituosas, que vão desde crenças religiosas, passando por preocupações com certo rigor social que pode haver num ambiente de trabalho, e chegando ao extremo de que a pele na velhice alteraria para pior o desenho feito na juventude. Claro que hoje, em 2023, muitas dessas falas ficaram para trás, mas para além da arte, tatuagens são também um acalento para a autoestima, quando camuflam uma cicatriz ou por reconstruírem a auréola do seio que retirou um câncer. Ainda assim você percebe que esse preconceito está restrito, hoje, a uma parcela ínfima da sociedade?

Canela – É, você teve uma cuidado de esperar até os seus 27 anos para que você estivesse mais madura no que você fosse escolher. Há falas preconceituosas, crenças de algumas religiões, e o social também, que inclui a família, sempre tem os que irão falar, e no ambiente de trabalho também... Se bem que isso aí [mercado de trabalho], cerca de vinte anos atrás, [o preconceito] era bem pesado. Por causa de uma tatuagem, você era prejudicado no serviço. Hoje, eu vejo que tem ainda o preconceito, mas ele é muito mais velado, porque a tatuagem atingiu a mídia e acabou se popularizando bastante. Antigamente também era muito difícil ter um tatuador. Aqui em Mogi, eu fiquei, por mais ou menos, uns quinze anos praticamente sozinho, não tinha outra pessoa que fazia tatuagem. Então, essa região do Alto Tietê inteira, praticamente tinha [o meu trabalho] como referência, o que propagou bastante a minha arte, e a quantidade enorme de tatuagens [mais de 27 mil] que eu já fiz deve-se a esses quinze anos com ausência de outros tatuadores. Hoje na cidade, se você for ver, tem cerca de 350, 400 lojas cadastradas. E isso tende a crescer também.

Com mais de 30 mil tatuagens feitas, seu 
diferencial é a arte corporal e filosófica/
Foto: Arquivo Pessoal

Sim, tatuagens acalentam a autoestima, desde que bem feita e agrade a pessoa que fez, o que incentiva a querer ter mais. Ressalto que é sempre importante escolher um bom tatuador. Já as tatuagens reparadoras agregaram valor à arte [de tatuar] foi bem aceita.   

LC - Tatuagem é fase. O desenho que te apaixonou aos dezoito anos de idade, pode vir a te constranger na fase adulta. No entanto, ela é parte da sua história, daquilo que te encantou no passado. No entanto, há profissionais que se recusam a recriar uma arte a partir de um  trabalho feito por terceiros, se não for esse o seu caso, poderia dar um exemplo de um caso sobre arrependimentos que tenha te marcado?

Canela – Sim, tatuagem é fase. Quando se é mais novo, o seu conhecimento é restrito, e geralmente a tatuagem é influenciada pelo tipo de vida que se vive, que pode ser por uma banda, ou para quem curte motociclismo. Hoje a área está muito diversificada, há artistas que vão para a área dos comics, do preto-sombra, das fotografias realistas... E tanto o jovem, quanto o adulto tem que analisar direito o que se vai escolher, porque essa tatuagem irá acompanhá-lo para sempre.

No meu conceito, a parte mais importante é a que antecede a tatuagem, que é a escolha, porque é para a vida inteira. Por mais bem feita que seja, a nossa pele envelhece, então vai causar algum transtorno nela também, como um desgaste de tinta, a própria pele vai criando rugas a depender do local, enfim, a pele se modifica, e a tatuagem se desgasta. Isso é um fato científico que não tem como fugir [risos]. Mas se é bem escolhida, ela te acompanha com a história que você implantou nela. Porém, o tatuador não deve ser responsável pela escolha e nem pela história da tatuagem, pois isso cabe ao cliente saber falar e pedir.

[Por outro lado] o tatuador está longe de ser um psicólogo, que vejo como uma área mais avançada, embora as pessoas conversem sobre suas vidas até no decorrer da tatuagem, talvez pelo grau de confiança que adquiri ali na hora que está fazendo, mas tem que ser bem filtrado, e não é o que eu vejo na grande maioria. Porque a partir do momento em que o tatuador influencia e se não é bem informado vai passar ao cliente informações também não tão boas, e assim vai ficar, porque o cliente permitiu. Isso é um grau de entendimento e compreensão de cada um. Eu, geralmente, procuro saber a respeito do que a pessoa quer fazer, porque eu tenho argumentos para analisar os desenhos com perguntas mais assertivas. E muitas vezes,  também, no decorrer dessa entrevista, eu consigo remodelar a ideia da pessoa. Ela chega com uma ideia e acaba levando outra. Quero ressaltar que em todas as minhas entrevistas para a imprensa, eu falo que o arrependimento com tatuagem é grande, porque não se escolheu um bom profissional, não soube falar direito o que queria. Tem tatuagens que exigem os estilos certos, por exemplo, traço fino ou traço grosso, um sombreado mais leve, um sombreado mais claro ou mais escuro, tudo isso é superimportante. As tatuagens coloridas são as que mais perdem a cor com o tempo, já a preto-sombra é mais durável por causa da nossa pele, do sol, do envelhecimento. Portanto, a preto-sombra é menos agressiva à pele, tem maior durabilidade, e quanto mais bem feita mais duradoura, e isso eu comprovo. Por exemplo, cores claras, num país como o Brasil, com um sol intenso, e com uma grande predominância de pessoas de peles morenas, a tatuagem colorida se adapta melhor em peles claras, com maior durabilidade. Já na pele negra, não se usa cor nenhuma, pouco sombreado, e não podem ser traços finos. Existe uma ciência para isso. E hoje, poucos tatuadores sabem disso, o negócio é pegar uma maquininha, e aplicar a primeira técnica que é fácil, já o aprofundamento, não. Eu tenho quarenta anos de tatuagem e continuo estudando. Essa semana mesmo, eu comprei um curso de um tatuador cuja arte eu admiro, pra aprender a técnica de tonalização do preto-sombra que ele usa, eu achei muito interessante para então aplicar nas minhas técnicas. Ou seja, quanto menos cuidado tiver, maior o arrependimento em tudo.

Outro fato, com essa demanda de pessoas que falam que fazem tatuagem, estes começam a fazer, fazem por dois ou três anos e depois param. Eu não posso julgar que essa pessoa fez algo errado, mas duvido que estudou ou que gostava do que fazia, que se aprimorou em técnicas, porque a partir do momento que está fazendo e recebendo por isso, passa a ser um trabalho. Ter referências sobre o tatuador é muito importante.

Os tatuadores mais gabaritados costumam ter preços mais caros que o normal. Isso é uma diferença enorme, e como a tatuagem se popularizou, as pessoas são influenciadas por preços. Por exemplo, o valor mínimo que eu cobro por uma tatuagem, eu já vi tatuadores que estão no mercado oferecendo quatro, cinco tatuagens pelo mesmo valor que eu cobro uma pequena. Então, a pessoa que não quer tomar cuidado nenhum, por que irá procurar um tatuador gabaritado para fazer uma tatuagem pequena se com um valor de uma ele poderá fazer cinco? E isso também [preço baixo] é um convite para fazer várias tatuagens. E é um perigo também, pois muitas vezes você está agindo pela emoção ou pela empolgação, aí sim você vai precisar de um psicólogo. Falo por experiência vivida pelos meus clientes, uma vez que o número de pessoas que me procuram para cobrir uma tatuagem é muito grande.

LC - Determinadas tatuagens são tendências de uma época. Lembro que no passado, anos 90 talvez, a moda eram as tatuagens tribais, embora seja muito provável que muitos nem sequer soubessem seus reais significados. Qual é o modismo dos últimos anos?

Canela – A tatuagem também acompanha um modismo, como você citou, tempos atrás eram as tribais, depois elas foram se modificando com o tempo, aparecendo outros tipos. Fazer sem saber seu significado tem a ver com o preço, ou com outras questões que não são vistas com seriedade, e de ambos os lados. Uma vez na minha equipe tinha um tatuador a quem eu questionei em reservador sobre o porquê [de optar por] àquele desenho visivelmente feio se haviam tantas outras opções mais bonitas. E então ele respondeu que havia sido uma escolha do cliente. Aí eu argumentei dizendo a ele que o meu estúdio obedece a determinadas regras, e dentro daquela proposta [da escolha do cliente] havia outros desenhos mais bonitos. Ainda assim ele foi categórico em afirmar que não havia nada a ser feito porque aquela era uma escolha do cliente. Ao final daquele trabalho, eu o demiti porque aquele não é o modelo de funcionamento do estúdio. Porque a minha preocupação é evitar um futuro arrependimento do cliente. E é um gasto a mais no caso de refazer uma tatuagem, mesmo porque ao refazer não se tem a mesma qualidade do que aquela que você tem para fazer numa pele sem nada por baixo.

LC - Um tatuador é um psicólogo em potencial? Há quem chega até o seu estúdio sem ter a menor ideia do que tatuar, e a partir de uma conversa, você traça um perfil daquele cliente e juntos chegarem num consenso de qual desenho melhor atende aquela expectativa?

Canela – Muita gente se coloca como um psicólogo do cliente. Eu acho um erro imenso, porque a psicologia eu vejo de uma parte muito importante, vejo que é um estudo muito legal pra que se acerte a pessoa ao seu centro. Então, um bom tatuador pode ter uma análise legal dentro do perfil da arte e o que a pessoa quer, mas denominá-lo como psicólogo, não. O tatuador tem que ser criativo, ser artista, e trabalhando com boa-fé em relação ao cliente, vai ter uma boa criatividade e vai chegar num consenso bem legal naquilo que melhor atende a expectativa do cliente. Mas não vamos levar para esse lado psicológico que vai alimentar o que eu não acho nada legal. Cada um na sua área, e muitas vezes tatuador não tem estudo nem de desenho, vai fazendo com informações através do Youtube, Instagram... Então, entre tatuador e psicólogo vamos colocar algo muito distante entre um e outro. Tatuador tem que ser artista e ter uma boa criatividade, aí ele está num bom caminho.

LC - Conforme seu perfil no Instagram, são mais de trinta e sete anos de profissão, com mais de 27 mil tatuagens espalhadas por aí, dentro desse percurso, e embasado por uma ética pessoal, que tipo de trabalho você não se autoriza fazer?

Canela – Devido ao tempo que tenho de tatuagem, e de uma boa escola que eu tive, pois comecei em 1984, com pouquíssimas informações, e de lá até próximo de 1990, eram poucos tatuadores. Eu, aqui em Mogi, alguns em São Paulo, onde tive o privilégio de conhecer uma equipe de italianos que trabalhavam por lá, e eles estavam com o intuito de divulgar a tatuagem no Brasil, e como eram de outro país, com outra cultura, eles divulgavam a tatuagem como arte, tanto que na minha época foram muitos preconceitos com pessoas tatuadas e  quem fazia tatuagem também era mal visto. Por isso que a grande maioria dos profissionais respeita quem veio lá de trás. Hoje é muito fácil, há ótimas máquinas, ótimos materiais, agulhas perfeitas, desenhos perfeitos, aonde você procurar encontra informações.

Eu saí de Mogi porque eu tinha conhecimento de um tatuador chamado Marco Leone lá em São Paulo. Não se tinha telefone, nem internet. Era preciso pegar ônibus e ir pra São Paulo e  tentar encontrar qual era o bairro porque não era divulgado, era muito restrito. Depois desse contato, fui recomendado a fazer cursos de desenho, estudei na Escola Pan-Americana de Artes, no Liceu de Artes e Ofícios, aqui em Mogi estudei com o Vitor Wuo, grande artista que me ensinou muito em desenho. E estudo eu faço até hoje, desde 1984 até hoje. Então o interesse do tatuador vai com esse amor à arte que ele tem. Isso não é modismo. Eu participo de convenções internacionais onde se discutem novas técnicas, quem vem de fora traz sempre uma novidade. Existe um intercâmbio onde, por exemplo, eu posso trabalhar em outros estúdios, ou seja, tudo isso tem um investimento financeiro e de tempo. Acaba sendo uma vida direcionada a essa arte. Não é à toa que um ou outro acaba adquirindo nome. O que eu tenho investido em feiras e eventos, é um valor que chega à casa das centenas de milhares de reais, além disso, meu estúdio equipado e atende às normas da Secretaria de Saúde. Não é ser um “tatuador modinha”. E veja, não há nada de errado, essa pessoa não está fazendo nada de errado, porque vamos lembrar, quem escolhe é o cliente, logo a responsabilidade é de quem escolheu. Você tem hoje os bons, os médios, e os não tão bons.

Eu não faço trabalhos que denigrem a imagem da pessoa, frases que não são positivas, porque eu não preciso ser compatível com a rebeldia ou com algo que não seja produtivo para aquela pessoa, e que posso denegri-la e ela não tem noção disso. Olha só o que eu aprendi em 1990 com a equipe italiana: evite fazer coisas como times de futebol, denominações religiosas, nomes de pessoas, com exceção de pai, mãe e filhos que são definitivos na vida, porque isso são escolhas passíveis a mudanças, ou seja, você está sujeito a mudar de religião, de times, não gostar mais de determinada banda, isso acontece com todos nós. Portanto, evitar esse tipo de tatuagem é sempre bem-vindo. E para explicar isso, e o cliente aceitar é necessário ter conhecimento. Por outro lado, pode-se fazer algo que não seja tão grande ao qual a cobertura não seja tão difícil, aí é possível para a pessoa curtir aquele momento e se vier a se arrepender já fica acordado com o tatuador uma cobertura da mesma. Embora haja no mercado o laser, não é certo dizer que o laser apaga a tatuagem por completo, porque assim que se retira a tinta da pele, vai ficar uma marca, um registro de onde foi tirado.

LC - Em dezembro do ano passado, por determinação judicial, o tatuador Neto Coutinho foi obrigado a cobrir a tatuagem do rosto de uma criança negra feita durante a convenção Tattoo Week do mesmo ano. A polêmica se deu porque o tatuador usou sem autorização da família do garoto nem do fotógrafo Ronald Santos Cruz a fotografia de uma criança de onde originou a tatuagem. Qual é sua análise sobre caso? A ação judicial foi uma censura ao trabalho artístico, ou independente da arte, ou cabe ao tatuador antes procurar obter informações sobre uma foto cujo cliente não tem qualquer grau de parente com o fotografado?

Canela – Com relação a essa polêmica é o seguinte. Através da internet, a gente pode pegar várias imagens. Agora, é muito bem-vindo quando você pegar uma imagem colocar o crédito da imagem, o que não foi o caso. Praticamente quem acionou isso não foi a família, foi o fotógrafo através dos direitos que ele tem. E se ele tinha direito, e ao ver que o evento era gigantesco – é o maior evento que se tem no país – usou da ação judicial para requerer os direitos que ele tem, porque não foram colocados os créditos, muito menos foi pedida uma autorização. Porque geralmente se está na internet, e você quer usar, entra em contato com o fotógrafo, e é muito difícil [o profissional] negar. Se ele negasse, não estaria ali na internet para todo mundo ver, ou teria alguma especificação de direitos autorais. Mas cabe a ele o direito de requerer legalmente o direito que é dele.

Edson Rodrigues Pereira, conhecido como Edson Canela, é artista, tatuador, filósofo e espiritualista. Dedica-se há quarenta anos à arte na pele. Faz parte da segunda geração de tatuadores do Brasil, com especialização de novas tendências, como na arte corporal e filosófica. Participou da 1ª Convenção Internacional de Tatuagem do Brasil, em 1990. Hoje, costuma ser convidado para diversos eventos no Brasil, como tatuador ou jurado.

Por Elisa Marina

terça-feira, 23 de maio de 2023

A bolha e a placenta, aconchego e acolhimento

 

O Mito da Caverna é uma alegoria narrada por
Sócrates que ilustra a busca pela verdade/
Ilustração: Sociologia Líquida

Numa comparação metafórica, poderíamos dizer que a bolha está para o sujeito assim como a placenta para o bebê, pois no aconchego e no modo passivo em receber os nutrientes responsáveis pelo seu desenvolvimento biológico é que a vida intrauterina se desenvolve. Nos grupos sociais, que podem ser tanto de ordem religiosa quanto política e até culturais, as informações circulam num ambiente acolhedor e aconchegante aos sujeitos pertencentes a estes grupos, que as recebem de modo passivo e acolhedor, abrindo caminhos para a confirmação de um pertencimento nos mesmos, formando, assim, uma bolha. Compactuar com as falas, copiar modos de agir e se vestir dos demais integrantes do grupo, é fazer valer esse pertencimento, que fora dele, desse organicismo vivo, cabe ao indivíduo buscar por meios próprios a fim de garantir a sua existência. Um feto não se desenvolve fora da placenta, logo um indivíduo é capaz de subsistir alheio aos grupos sociais? 

Tomando como exemplo o Mito da Caverna* contado por Sócrates na obra A República, de Platão, somos muitas vezes pessoas que estamos trancafiadas dentro de uma caverna, amarrados com correntes pelos pés com a incapacidade de virar a cabeça para a abertura da caverna. E nós estamos olhando para a parede, atrás de nós tem uma pequena mureta onde passam pessoas com coisas, só vemos a sombra das coisas na parede. Como tem ruído, a sensação é que essas coisas que estão na parede falam e têm vida. Um dia, conta Platão, uma das pessoas que estava na caverna escapa, conseguindo romper com o grilhão que a mantinha por lá. Conforme explica o filósofo Mario Sérgio Cortella, no episódio Bolha do podcast A Grande Fúria do Mundo, “qual é a primeira coisa que acontece quando você sai de uma caverna? Perde a capacidade de enxergar, porque a luz do sol é forte. E a tendência de quando se sai da caverna, ou da bolha, é querer voltar correndo para dentro dela porque o mundo externo é muito desconfortável, fere a visão, fere a percepção. Quando você vai pouco-a-pouco se habituando [com o mundo externo] e vê que o que está fora da caverna também existe e, muitas vezes, é mais autêntico do que aquilo que está dentro da caverna, e se você é alguém que tem afeto pelas pessoas que ficaram, você volta pra dizer a elas que o que está na caverna não é verdade, ou não é tão-somente uma única verdade. E qual é a consequência disso tudo? [As pessoas da caverna] matarem a pessoa que voltou, pois esta busca (para o grupo) tirar a ilusão [verdade] de suas crenças”.

No livro Conformismo, Charles A. Kiesler e Sara B. Kiesler, dentro da perspectiva da psicologia social, discorrem sobre a influência do pertencimento em grupos a partir de dois efeitos, a obediência e a aceitação íntima. Como exemplo, os autores iniciam o livro com uma nota publicada em setembro de 1954, num jornal no norte dos Estados Unidos, que dizia o seguinte: Profecia de Planeta. Clarion diz à cidade: fuja dessa enchente, ela nos atingirá no dia 21 de dezembro. É o que o espaço diz a uma habitante de nosso subúrbio.

A profecia tinha sido dada por uma “Sra. Keech”, que afirmava não ser sua, mesmo assim conseguira reunir alguns seguidores que também acreditavam na profecia e se preparavam para o grande acontecimento. Quando em 21 de dezembro não houve a tal enchente, muitos deixaram o grupo. No entanto, as pessoas mais comprometidas com a profecia não apenas resistiram em suas crenças depois desse desmentido, como também começaram a recrutar novos crentes e novos membros para o grupo.

Todos nós pertencemos a grupos de pessoas. Além disso, tais grupos influem em nós. Nosso comportamento e nossa atitude se modificam a medida que interagimos com os outros. Nem todos os participantes do círculo da Sra. Keech acreditavam em sua profecia. Alguns eram cépticos mas tinham outras razões para agir de acordo com o que era esperado e exigido pelo grupo. Os dois tipos de pessoas – os cépticos obedientes e os crentes verdadeiros – eram conformistas, pois apresentavam alguma forma de mudança na direção das expectativas do grupo. Esses dois tipos de conformismo foram denominados pelos psicólogos sociais como obediência e aceitação íntima.(...) A obediência refere-se ao comportamento explícito que se torna mais semelhante ao comportamento que o grupo deseja que seus membros apresentem, independentemente das convicções íntimas do ator. A pessoa se comporta como o grupo deseja que o faça, mas, na realidade, não acredita naquilo que está fazendo. A aceitação íntima refere-se a uma mudança de atitude ou crença, e na direção das atitudes e crenças do grupo. Nesse caso, a pessoa pode, não apenas agir de acordo com os desejos do grupo, mas também mudar suas opiniões, de forma que passe a acreditar naquilo que o grupo acredita.

O nascimento é um processo doloroso que obriga o bebê a deixar para trás o seu pequeno e recluso mundo, sua caverna, e romper com a placenta, sua bolha, que até então o mantinha vivo, para a partir de então aprender a viver fora dela. Assim somos, depois de sairmos dessa placenta, e uma vez crescidos continuamos enlaçados a bolhas de aconchego em busca de pertencimentos; romper com os grilhões que nos mantém vivos nesses grupos é um processo de dor, por isso vai de cada um perceber quando é a hora do próprio parto, mas claro, desde que se queira nascer.

*O Mito da Caverna, de Platão, contada por Sócrates, é uma alegoria que ilustra a natureza da realidade e a busca pela verdade. Na história, Platão descreve um grupo de pessoas que foram criadas e vivem em uma caverna desde o nascimento. Todos estão acorrentados, com as cabeças viradas para a parede, sem poder mover-se ou ver a luz do sol. O único mundo que conhecem é aquele que elas enxergam projetado na parede da caverna. Ou seja, a única realidade que os habitantes da caverna vivencial são as sombras dos objetos que passam em frente a uma fogueira. Eles não têm conhecimento do mundo exterior. No entanto, quando um dos prisioneiros consegue se libertar e sair percebe que a realidade que ele conhecia antes era uma sombra da verdadeira realidade.

Por Elisa Marina

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Gentilezas a uma demanda para a subserviência

Bajulação que enlaça com uma demanda
para uma subserviência

O coach idealiza e persuade. Aquele que o escuta, convocado à ação, aceita sem questionar. E então novos modelos de atendimentos são estabelecidos nas relações comerciais, onde afeto é a palavra da vez. Sai o velho conceito de insistir na venda dentro de uma abordagem formal e direta entre os sujeitos para dar entrada com vistas a criar meios de afeição ao outro, no caso o cliente,  a fim de tocar em seus afetos para daí extrair o objetivo final, que é a venda. Logo, o café cordialmente oferecido traz, em última instância, a mensagem subliminar de que aquela gentileza irá receber como troca a compra de um produto ofertado.

Frente a esse competitivo capitalismo selvagem, onde a cada instante surgem novas práticas  com modelos de se buscar um diferencial frente ao concorrente, é preciso inovar para se destacar,  vender para lucrar. E então chegamos ao admirável novo mundo das gentilezas nos estabelecimentos comerciais, que só acontecem porque tem um apelo inscrito naquele a quem a cordialidade é direcionada.

O cliente entra, e o que antes resumia-se a um simples cumprimento entre as partes, hoje, mostra-se como abertura a laços afetivos. "Olá, bom dia. Me chamo Jéssica, e você, meu amor?". Sim, sou o amor de quem sequer conheço, e esse tal "amor" será repetido à exaustão até a finalização da venda. "Quer um café? Procura o que?". Estou numa farmácia e o tratamento me faz lembrar uma loja de sapatos. "Quero uma amoxicilina de couro número 36", penso. "Me informa o seu CPF, amor, para ver se tem desconto". Aqui, o atendimento totalmente personalizado, me garante um desconto especial, e somente para mim, chupa invejosos. Qualquer semelhança com o cara que disse ter ligado para você e somente para você porque bateu saudades não é mera coincidência.

Na paquera com o caixa, também meu amor, (sou dele e ele é meu) ele também me pergunta pelo meu CPF, dessa vez me faço de difícil e digo que não vou lhe informar. Adoro quando eles fazem biquinho e me convencem da possibilidade de um desconto ainda maior. Como sou fácil.

Vou para a loja de roupas e por lá a suruba se dá assim que entro no estabelecimento, com muitos amores vindo ao meu encontro. "Oi meu amor". Vou dar uma olhada apenas. "Tudo bem, meu amor, qualquer coisa é só me chamar". Não chamo, estou no fundo da loja e fora do radar dela, mas próxima ao olhar do rapaz que elogia a minha bolsa dizendo que o modelo tem tudo a ver com a vestido no manequim sem rosto. "Estava te esperando". Um manequim sem vida intuía que eu entraria na loja para vê-lo?

Na doceria, a formalidade é elevada à quinta potência quando sou chamada de senhora. Logo hoje que coloquei essa botinha tão modernosa e uma saia nada casual? Sinto-me projetada à Colombo de 1920, com um casquete cinza discreto e um vestido longo esbarrando no chão de mármore. Pausa dramática. Sou uma mulher negra, na Colombo de outrora eu não estaria sendo servida, mas servindo a madames insuportáveis que me olhariam de cima abaixo e de quem aceitaria passivamente toda e qualquer petulância.

Voltemos a 2023, ano em que daqui uns dias serão completados 135 anos do fim de uma escravidão que durou quase quatrocentos anos  mas que até hoje da sinais de  que suas marcas não saírão da sociedade tão cedo.

Os casos acima mostram que a subserviência é muito mais uma resposta a uma demanda social do que uma crítica aos funcionários que para defender o pão de cada dia são obrigados  a obedecerem cartilhas de boas práticas na relação com os clientes. Vivemos num país com resquícios coloniais onde babás ainda vestem-se de branco mesmo que sua função exige interagir com a criança com brincadeiras que certamente farão sujar o uniforme de trabalho. Porém, seus patrões formam a massa dos sujeitos que ostentam seus títulos, com evidências claras de exigir uma subserviência daqueles a quem julgam como profissões inferiores. Ter do outro o agrado em demasia revigora egos antes reprimidos. Não basta apenas apresentar a mercadoria, é preciso bajular o cliente.

"Sua compra foi recusada". Acho estourei o limite do cartão. "Aceitamos pix". Estou sem saldo na conta. A cara de paisagem é um abismo entre nós. Cadê, agora, o amor? E os votos de amor na riqueza e na pobreza? Sou, então, tomada de uma saudade, quando o amor era declarado em um cartão, mas naqueles de papel.

Por Elisa Marina

  .  Porque vivemos num país onde babás ainda usam branco mesmo que para brincar - e se sujar - nos parques, com sujeitos que dizem de seus títulos muito mais do que de seus, carentes de paparicos e atenção. Ter no outro o papel daquele que lhe agrada em demasia revigora egos antes reprimidos. Não basta apenas apresentar-se, é preciso bajular.
"Sua compra foi recusada". Ih, estourei o limite do cartão. "Aceitamos pix". Estou sem saldo. A cara de paisagem é um abismo entre nós. Cadê, agora, o amor? E os votos de na riqueza e na pobreza? Sou tomada de uma certeza: o amor


      .  Porque vivemos num país onde babás ainda usam branco mesmo que para brincar - e se sujar - nos parques, com sujeitos que dizem de seus títulos muito mais do que de seus, carentes de paparicos e atenção. Ter no outro o papel daquele que lhe agrada em demasia revigora egos antes reprimidos. Não basta apenas apresentar-se, é preciso bajular.
"Sua compra foi recusada". Ih, estourei o limite do cartão. "Aceitamos pix". Estou sem saldo. A cara de paisagem é um abismo entre nós. Cadê, agora, o amor? E os votos de na riqueza e na pobreza? Sou tomada de uma certeza: o amor