Carrascoza cria tramas com profundidade, e narra histórias que podem parecer comuns, mas é daí que sua escrita encontra meios próprios de extrair os dramas de suas personagens/Foto: Arquivo Pessoal |
Nesta quinta-feira, o Trajetórias Literárias, evento coordenado pelo escritor Ademiro Alves de Sousa, o Sacolinha, recebe o escritor João Anzanello Carrascoza, autor de contos e romances. Mas antes de ir a Suzano, o escritor concedeu uma entrevista exclusiva para o Labareda Carmim.
Nascido em Cravinhos (SP), Carrascoza publicou os romances Trilogia do Adeus, Aos 7 e aos 40 e Elegia do
Irmão, além dos livros de contos Diário
das Coincidências, Aquela Água Toda
e Tramas de Meninos.
Recebeu, entre outros, três prêmios Jabuti, APCA, Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil, e da Fundação Biblioteca Nacional. Seu
primeiro livro, Hotel Solidão, foi
publicado em 1994. Algumas de suas histórias foram traduzidas para inglês,
francês, italiano, sueco e espanhol. É publicitário por formação, e atualmente
leciona na USP e na ESPM.
Nessa entrevista sobre Tramas
de Meninos, Carrascoza elabora a morte que está presente em muitos dos
contos e nos ajuda a pensar que essas tramas também podem ser ouvidas como
dramas de meninos, que se emaranham na relação conflituosa entre irmãos, como no
conto Nuvem, que são também tecidas pelo olhar do filho em Separação ao assistir a repetidas cenas de violência doméstica, ao mesmo tempo em que busca compreender que tipo de amor há
naquela relação, entre pai e mãe. É neste fio condutor atemporal que Carrascoza tece historias
de pessoas comuns, onde a profundidade desses dramas constitui um bordado de
cores, ora suaves, ora densas, mas sempre tramas.
Labareda Carmim –
O que o escritor João Carrascoza tirou de si, do menino João, para escrever
essas tramas de meninos?
João Carrascoza – A gente sempre tem um menino dentro da
gente. E o Tramas de Meninos me deu
uma ideia de construir um conjunto de contos, com uma ordenação espelhada,
sendo a primeira parte (Primeiros Fios) um conjunto de contos e a segunda
(Segundos Fios), outro conjunto de contos, formando outra fiação, outra
linhagem de historias, mas com uma correspondência entre o primeiro conto e o
último, e assim sucessivamente, para demonstrar os vários meninos: os que ainda
são meninos, os homens que se lembram de quando eram meninos, os homens velhos
que acessam os meninos que existem neles. E embora pareçam que sejam só tramas
de meninos, são tramas de meninas também, pois há várias personagens femininas.
LC – São tramas
de meninos, como também de meninos homens quando tomados por suas lembranças.
Somos meninos e meninas flertando com um corpo adulto que insiste em apagar a
própria infância?
JC – Muitas personagens estão na história para representar o
mundo feminino. São as meninas que a gente encontra no caminho. As meninas-irmãs,
as meninas-tias, as meninas-amigas... É por esse caminho que eu fui construindo
esse livro, para que ele tivesse essas narrativas se intercalando, e ao mesmo tempo
se entrelaçando para criar um espectro maior de trama, de desenho, no qual
tivessem identidades distintas, tanto de homens quanto de mulheres.
LC – Vidente é um conto que me toca, porque
não se trata da morte do outro (ainda que ela esteja ali como um medo
sufocante) mas da própria morte. E em muitos dos contos do livro, a morte está
de algum modo inscrita, às vezes descrita, ou então citada. Para você, falar de
morte, da morte, ou sobre a morte, te causa angústia, ou seria mais do que
isso, um alívio a uma angústia e que por isso escrever sobre é deitar num divã
imaginário?
JC – Com relação
ao conto Vidente, fico contente que
você tenha observado e feito uma leitura profunda dele, ele vai dialogar – porque
ele é o penúltimo conto da segunda parte – vai fazer um arco, reflexo, com o
segundo da primeira parte que é [o conto] Quem?.
Não se sabe quem morre num determinado acidente, você deve se lembrar. E também
em Vidente, o vidente está procurando
entender quem é que vai morrer, como ele sempre soube quem iria. E ele só vai
descobrir [alerta de spoiller] que é ele mesmo, como você mesmo pergunta.
Eu sempre tive uma relação com a morte desde menino,
observando que no fundo, apesar de ser um corte na existência, um corte
definitivo, a vida é muito mais valiosa porque há um fim para ela. Então, a
morte só se justifica porque há uma vida. Mas por outro lado, até quando a gente
vai morrer, a morte tem que ficar a espera, de joelhos ou não, quieta ou não,
mas de qualquer maneira, encarcerada, para que a gente possa realizar a vida,
que a vida possa se cumprir plenamente dentro do tempo que ela foi possível
realizar-se. Como a morte é o fim da consciência, não há de se sentir dor, nem
tristeza, nem perda, nem saudades, quem sentirá serão aqueles que estão.
Portanto, há de se preocupar com o que fazer da nossa vida, antes que a morte
chegue.
LC – “Como um
filho não se faz sem um homem, logo as amigas desaguaram a falar sobre seus
maridos (...)”. Sobre essa passagem no conto Presentes, a Ciência concordaria com o narrador, já as feministas
provavelmente não, e mais, diriam que um filho também se cria sem maridos. Dito
isso, eu te pergunto se a sua escrita dialoga com o feminismo, ou você se sente
livre para escrever à margem dessas falas que ressoam hoje na sociedade?
JC – A frase está
dentro de um contexto, de que a mulher precisa de um homem, não no sentido de
estar com ela para cuidar dos filhos, pois há muitas mulheres que cuidam de
seus filhos cujos pais são ausentes. Mas na conjuntura da narrativa, como as
amigas estão se encontrando para um chá de bebê, a ideia é de uma
relação com o lado do masculino, ou seja, por mais que você possa querer um
filho, é preciso ter a parte masculina desse filho, o sêmen do homem.
Na minha literatura você vai encontrar presenças femininas fortes,
até porque eu entrei para a literatura como escritor graças às mulheres: minha mãe, minha avó, minhas tias, minhas irmãs, primas, enfim, as
mulheres que circulavam muito na minha casa, que contavam muitas histórias
entre si, que eu gostava muito de ouvir, que me incentivaram a ler, como também
me incentivaram a escrever as histórias que vinham pra mim, então é um mundo
feminino no qual eu sou muito grato, e sempre procuro representar [todas] de maneiras
distintas: a mulher cuidadosa, a mulher que ama outra mulher... É possível
encontrar todas elas em outros textos que venho escrevendo.
JC – A literatura brasileira tem se movido bastante com a
grande inclusão de escritores, tanto da prosa quanto da crônica e do romance, e mesmo
da poesia, até da não-ficção, do ensaio crítico, dando espaço para muito
segmento minoritário, como vemos, por exemplo, a literatura de causas negras, a literatura
indígena, enfim, são novas temáticas e de posição de grupos que antes tinham
pouco espaço em função de um certo monopólio editorial, monopólio de mercado,
monopólio acadêmico e do campo literário. Fico feliz de ver esse movimento de
grande abertura, o que amplia a pluralidade e a beleza da literatura feita
entre nós.
Texto: Elisa Marina
Trajetórias Literárias
Quando: Hoje, às
20h
Onde: Cineteatro
Wilma Bentivegna
Rua
Paraná, 70 – Jardim Paulista – Suzano
Entrada gratuita